14/12/2014
ISABEL CLEMENTE
Qualquer conceito que associe o núcleo familiar à união estável entre homem e mulher vai contra a realidade e estará fadado ao fracasso
Na próxima terça-feira, dia 16, irá à votação na Câmara dos Deputados o polêmico projeto de lei conhecido como Estatuto da Família. Como está, o texto do deputado Ronaldo Fonseca (Pros-DF), o relator, restringe a definição de família à tradicional união de homem e mulher - e ainda proíbe a adoção de crianças por casais homossexuais.
Difícil avaliar o desastre social provocado por uma lei que vai contra a realidade de tantas crianças criadas e amadas por famílias mais versáteis do que gostaria uma parcela da população brasileira, que parece ainda não ter acordado para a dimensão do assunto nem para o alcance de algo tão antigo quanto a humanidade: o amor.
Uma enquete promovida pelo portal da Câmara dos Deputados sobre o assunto mostra um empate na opinião dos brasileiros. Mais de 4,4 milhões de pessoas votaram até agora: metade entende que o conceito de família precisa ser mais abrangente, e a outra metade quer associá-lo apenas à união homem-mulher.
Para mim, todas as tentativas de amarrar família a um conceito tradicional estão fadadas ao fracasso. Família é a origem de onde viemos. Mas família também é o campo que nos acolhe como semente e nos permite germinar. É essa família acolhedora que conta no dia-a-dia, na hora de fazer valer direitos e decisões práticas que podem ter uma lei como obstáculo.
Sempre houve e continuará havendo produções independentes, mães solteiras a rodo. Gente abandonada pelo marido, pela companheira, pelo outro. Tem crianças órfãs criadas pelos avós, pelos tios ou mesmo pelo primo distante. Crianças em abrigos lidam com um conceito ainda mais elástico, de uma "família" de funcionários pagos para olhar por ela. Há filhos com dois pais, ou filhos de duas mães, gente que, se não se juntou por amor, pode estar unida pelo acaso.
Quem vai julgar? Ninguém sabe das voltas que a vida do outro dá. Há crianças tão sortudas que já saem de fábrica com dois pais e duas mães, ou madrastas que são também mães, e padrastos que são os melhores pais. Está na moda ter meio-irmão. Tem família que conta com um cachorrinho para complementar a história, um gato talvez. A única certeza que se tem é que a minha família não é igual a sua, e a sua também não é igual à de ninguém. E que, a despeito de todo avanço da medicina, a gente não escolhe o filho que aparece dentro da barriga, como não se escolhe o que vem pela adoção. Ninguém controla 100% os genes de uma gestação. Há filho que sai da barriga mas nem por isso chega com o mesmo DNA. A medicina avançou também nessa direção. E há filhos naturais que podem surpreender porque são frutos que caíram muito longe do pé que os gerou.
Se não for do seu feitio atribuir essa relação de pais e filhos a alguma fé, fique com o acaso. Eu encontrei a mais universal definição de família em algo muito singelo. Ela não está descrita em nenhum projeto de lei nem em dicionários. Não foi escrita por nenhum filósofo nem defendida no plenário por um parlamentar iluminado. Ela apareceu no desenho de uma criança.
Minha filha mais velha, aos 8 anos, desenhou nós quatro - eu, meu marido, ela e a irmã - caindo de paraquedas quando pedi que ela fizesse um desenho da nossa família para divulgação do meu livro, A pior mãe do mundo: uma biografia não autorizada de todos nós (5W), que costumo definir como crônicas familiares que só mudam de endereço.
Quando vi aquele desenho, sorri por um tempo indeterminado. No papel, nossos avatares sorriam prontos para aterrissar no mesmo chão. Pedi também à filha caçula, então com 4 anos, que desse sua colaboração e ela me veio com uma árvore, um sol, um elefante e uma girafa. Tentei convencê-la a fazer algo mais humano mas ela insistiu nos animais selvagens. Entreguei os desenhos à editora.
O resultado final está aí ao lado: uma girafa e uma árvore solitária remetendo à savana africana - enquanto quatro paraquedistas caíam juntos do céu. Eu estava diante da mais genial definição de família com crianças pequenas: um núcleo formado por indivíduos que caem literalmente de paraquedas na vida selvagem. Troque os personagens à vontade. Ainda bem que é assim.
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http://epoca.globo.com/…/noti…/2014/12/defina-bfamiliab.html
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