terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A HISTÓRIA DA FILHA ADOTIVA DO TRIÂNGULO ENTRE MARY MORSE, LOTA DE MACEDO E ELIZABETH BISHOP


Mônica quer resgatar sua origem e reescrever uma história ainda cheia de lacunas
Marcelo Balbio
26/01/14

RIO - Numa das cenas mais fortes de “Flores raras”, filme que teve em torno de 300 mil espectadores no Brasil e ganhará versão em DVD em março, Lota de Macedo Soares (Glória Pires) desce de um Jeep com uma carteirona debaixo do braço, segue em direção a uma casinha simples onde uma família modesta a aguarda, e volta com um recém-nascido nas mãos. Dentro do veículo, Mary Stearns Morse (Tracy Middendorf), ex-companheira de Lota, assiste a tudo aos prantos, e é ela que acolhe o bebê. Na tela, a criança se chama Clara. Na vida real, a primeira menina adotada por Mary ganhou o nome de Mônica, e hoje é uma mulher de 53 anos, mãe de dois filhos já crescidos e que, depois de um casamento de duas décadas, há alguns anos vem reconstruindo a vida sozinha no mesmo cenário em que se formou o triângulo amoroso de Lota, Mary e Elizabeth Bishop, na Região Serrana do Rio.
— A cena não é verídica. Não sei ao certo minha origem, mas sinto que não foi daquele jeito, como se tivesse sido comprada — diz Mônica, que, movida pelo interesse que o filme despertou sobre sua história, prepara-se para transformá-la em livro este ano, o do centenário de Mary (agora, no dia 14 de fevereiro), e antes do cinquentenário do Aterro do Flamengo, em 2015. — Sou filha das três. Eu tinha a tia Elizabeth, a avó Lota e a mãe Mary.
Nos seus primeiros anos de vida, as três tiveram papéis diferentes e decisivos em sua formação. Mary, mãe rígida mas não menos carinhosa, era a educadora. Elizabeth, à sua maneira, também contribuía na educação, especialmente nos bons modos. Lota reverenciava a infância alheia sendo a mais alegre e transgressora com a “neta”.
— Além de uma mãe, também tinha uma avó presente, que me botava num Jaguar para passear, me enchia de brinquedos, atravessava comigo o rio, plantava morangos, me deixava subir em árvore — conta.
Depois da morte de Lota, Mônica perdeu o contato com a “tia” Elizabeth. Já adulta, soube pela mãe que a escritora chegou a lhe enviar presentes e cartas, nunca repassados a ela:
— Elizabeth escreveu para mim através dos livros.
Na primeira vez em que tentou assistir ao filme, Mônica saiu na metade.
— Parecia que Lota tinha encarnado na Glória Pires. Foi muita emoção. Mas a Mary não era aquilo (no filme, Mary passa de namorada de Lota a uma pessoa com certo ar de mal-amada, depois de trocada por Bishop). Ela era uma mulher de bem com a vida. Ia à praia todo dia. Frequentava com grupo de amigas o Country Club. Gostava de tomar seu uísque. Por isso, vejo o filme como uma ficção.
Paula Barreto, produtora de “Flores raras” ao lado de Lucy Barreto, lembra que Mônica colaborou na realização do filme:
— Ela tentou até nos ajudar na captação de recursos, mas não conseguiu. Não é fácil obter verba com empresas para filmes como este. Para a pessoa que faz parte da história, há uma expectativa de que o filme seja cópia fiel da vida, mas ela entendeu que não era um documentário. Entendeu a questão da ficção — diz.
Seja no filme, seja na vida aqui fora, a figura de Mary Morse esteve mais para coadjuvante do que para protagonista, ofuscada pela figura forte e depois combalida de Lota — a idealizadora do Aterro do Flamengo, que tirou a própria vida numa viagem aos EUA — e de Elizabeth Bishop, a escritora perfeccionista que transformava o que via e sentia em poemas magistrais. Um dos idealizadores do Instituto Lotta de Cultura e Arte-Educação, criado em dezembro de 2012, Fernando Nascimento conheceu Mônica quando buscava familiares de Lota e de pessoas que conviveram com ela para integrar o seu quadro.
— Mônica nos trouxe uma verdade diferente da que podemos encontrar nos livros publicados até hoje e a importância de Mary nesse trio. Como filha de banqueiros em Boston, Mary tinha a experiência para “sustentar o trio”, criando, por exemplo, o condomínio da Samambaia (onde Lota e depois Mary construíram casas que são símbolos da arquitetura brasileira) — afirma ele, que convenceu Mônica a se tornar membro do conselho da entidade. — Queríamos ter pessoas da família, já que o ponto principal do instituto é a preservação da memória.
Para Fernando, ficou de fora da “história oficial” a noção de que Mary tinha dinheiro de família (“Parece que a Lota era rica, mas não.”) Mônica, principal herdeira de Mary (por sua vez herdeira de Lota), com patrimônio que inclui obras de arte valiosas mas também peças de valor afetivo, como a cópia de um passaporte de Lota e uma carta dela de próprio punho deixando bens para Mary, vai além:
— Mary não recebeu herança porque era amante, mas porque era sócia. No caso do condomínio, Lota tinha terras, mas Mary tinha dinheiro para tocar o negócio.
Radicada no Brasil, Mary, bailarina americana descendente de uma família endinheirada, teve no total quatro filhas adotivas. Mônica, a mais velha, lembra da origem de cada uma: Marta era “filha de um porteiro com uma empregada doméstica e chegou com uma semana de vida”; Margarida “foi trazida de um orfanato em Teresópolis com 4 anos”; e Mariana “tinha meses quando deixou um orfanato em Petrópolis”. Mônica gosta de sublinhar que, de todas, foi a que permaneceu por mais tempo e até o fim com Mary, cuidando dela até sua morte, num Dia das Mães de 2002, depois de sofrer de Alzheimer. Mônica lembra que Marta, hoje nos EUA, foi a primeira a sair de casa, para viver nas ruas, aos 11 anos. Margarida saiu aos 15, para morar com um namorado — hoje reside na Argentina. E Mariana, que morreu aos 40 anos vítima de um AVC, saiu aos 23. Mônica viveu com Mary até os 24, quando foi passar dois meses na Inglaterra e ficou por dois anos. Na volta, casou-se, mas continuou morando perto de Mary, no Leblon. Quando perguntava à mãe sobre sua própria história, no entanto, ouvia as mesmas palavras: “Sua mãe morreu no parto, e seu pai não tinha como te criar. Eu sou sua mãe”:
— Ela não gostava de falar do passado.
Na certidão de nascimento, acostumou-se a ver apenas o nome da mãe. No campo destinado ao pai, um pontilhado. No reservado ao local de nascimento, idem. Assim foi até que há poucos meses, depois de muito procurar e não encontrar o documento original, seu advogado pediu uma segunda via a um cartório em Petrópolis. Quando a recebeu, uma surpresa: desta vez havia um local indicando onde Mônica nascera, a Casa da Providência, entidade então administrada por freiras que inaugurou uma maternidade em 1959, na mesma cidade. A esperança de que, finalmente, conheceria sua origem logo se foi. A instituição, hoje desativada e com prédio em reformas (deve voltar a funcionar, mas sob comando da Unimed), alegou, conta Mônica, que perdeu os livros referentes aos anos de 1959 a 1961. Ela comemora aniversário no dia 25 de outubro (de 1960), conforme consta em seus documentos, mas jamais teve certeza de que foi mesmo nesta data que sua mãe biológica lhe deu à luz. Através de um escritório de advocacia em Petrópolis, entrou com uma ação para recuperar um possível registro de nascimento. O processo segue em segredo de Justiça. Mônica chegou a ter também nacionalidade americana. Seis meses depois de adotada, já em 1961 viajou com Mary para os EUA, onde um novo registro de nascimento lhe foi dado. Já adulta, teve a cidadania cassada:
— Suspeito que alguém da própria família fez uma denúncia ao consulado, contando a história da adoção, das certidões etc. Se fosse à frente, minha mãe poderia ser acusada de falsidade ideológica. Posso viajar, mas com visto de entrada no passaporte brasileiro.
No livro “Uma Arte — As cartas de Elizabeth Bishop” (Companhia das Letras), a escritora relata a um casal de amigos: “A Mary Morse (nossa amiga americana, que mora perto de nós em Samambaia) está louca para adotar outra menininha — talvez até mais duas — já que a Mônica deu tão certo. Ela é um amor — me chama de ‘titia’ — e eu que nunca imaginei que fosse acabar assim. Mas ela é muito alegre e afetuosa (...) Completou 2 anos no dia 25 — a data de aniversário que a Mary escolheu para ela arbitrariamente.” Em outra correspondência transcrita no mesmo livro e endereçada a uma amiga, fala da alegria da menina: “A Mônica... olhe, eu nunca tinha conhecido um bebê que realmente me desse vontade de pegar para criar. A Mary teve muita sorte. A menina é saudável, esperta, muito viva, e feliz. Nunca vi tanta felicidade a troco de tão pouco — mas quem sabe ela não percebeu, da maneira como as crianças percebem estas coisas, que a vida dela deu uma virada extraordinária?” (Em tempo: para quem aprecia a obra de Bishop, a editora de “Uma Arte” lança no dia 30 “Prosa”.)
Mônica, de fato, não reclama da sorte. Na infância, podia estar em Petrópolis, logo depois no apartamento de Lota na Praia do Leme e em seguida embarcando num avião rumo a cidades dos EUA. Em casas frequentadas na época por poetas, artistas, políticos, não é difícil imaginar que tenha sido paparicada por figuras como Carlos Lacerda, Cândido Portinari e Vinicius de Moraes. Este último teria sido a figura que, diante de mães de primeira viagem, interrompeu o berreiro de um bebê faminto, que teimava em mamar mas não conseguia, furando o bico da mamadeira (em “Flores raras”, esta tarefa cabe a Bishop). Tem lembranças felizes da vida na serra, onde começou mas não terminou a faculdade de Pedagogia. Durante a estada na Inglaterra, fez um curso de desenho de moda (“com especialização em tapeçaria, o que a Lota iria adorar”, diz), e depois viveu sempre em áreas nobres do Rio. Casada mais tarde com um engenheiro, abriu uma loja de recreação infantil no Shopping da Gávea, evitando fazer alarde em torno de sua origem.
Hoje, mora numa espécie de estúdio cercado de verde num bairro afastado do centro de Petrópolis, para onde decidiu voltar depois do fim da relação. Sem disfarçar um tanto de vaidade e senso de oportunidade, parece à vontade no papel de dona da história.
E, tal qual a descrição de Bishop, dá sinais de que continua alegre e afetuosa. Quem a segue no Facebook é recebido com uma foto em que aparece sorridente usando uma máscara de carnaval. Pessoalmente, segue a mesma trilha. Basta uma pergunta inicial do repórter e não para mais de falar, mas sempre em tom calmo e dócil. Mônica quer mostrar que tem muito o que contar, emendando os capítulos de uma trama tão rica quanto cheia de lacunas.
No mês passado, teve uma revelação que pode ajudar a preencher mais uma. Após pedir autorização para visitar a casa em Petrópolis que pertenceu à sua mãe, foi procurada, através de um amigo em comum, pela atual proprietária, e convidada para um almoço na residência da família, de sobrenome tradicional, no Rio. A matriarca, nonagenária, ouvira falar do nome de Mônica Morse, filha de Mary Morse, e queria lhe contar que fora ela, a pedido de Lota, que há meio século resgatara um bebê num subúrbio do Rio. A possível mãe biológica seria uma mulher do Espírito Santo, que, depois de viúva, deixara com a sogra os quatro filhos, todos meninos, e viera tentar a sorte no Rio. Aqui, engravidou e, antes de voltar para sua terra, optou por “doar” o neném. Mas como explicar o nome de uma maternidade de Petrópolis na certidão de nascimento?
— Acho que o registro de nascimento foi forjado, para eu ter uma certidão — supõe Mônica. — Tenho a sensação de que agora, por conta do filme e de uma série de coincidências, ou não, minha vida está ebulindo.
Flores raras nem sempre desabrocham. Mônica, pelo visto, não acredita muito nisso.
Monica Morse em casa Daniela Dacorso / Agência O Globo
http://ela.oglobo.globo.com/vida/cultura-em-vida/a-historia-da-filha-adotiva-do-triangulo-entre-mary-morse-lota-de-macedo-elizabeth-bishop-11407538

Nenhum comentário: