domingo, 2 de fevereiro de 2014

AMOR OU SANGUE?


02.02.2014
Carlos Pires

1. Vou ao cinema sempre que posso: um bom filme proporciona-me o conhecimento e a reflexão sobre temas que, na correria do dia-a-dia, não tenho oportunidade de abordar. Sou pois criterioso na escolha do filme: privilegio aqueles que tratam as relações humanas ou os desafios sociais que a modernidade coloca ao Homem.
Foi embalado neste ânimo que assisti a “Tal Pai, Tal Filho”, o mais recente filme do conceituado cineasta japonês, Hirokazu Koreeda (autor também do argumento!), vencedor do Prémio do Júri na 66.ª edição do Festival de Cannes.
O filme é um drama inquietante sobre duas famílias, de classes sociais diferentes, que, na grande metrópole de Tokyo contemporânea, descobrem, ao fim de seis, que os seus filhos foram trocados na maternidade. Os advogados do hospital aconselham que (re)troquem as crianças e que as mesmas sejam entregues aos respetivos pais biológicos.
A questão que se coloca de imediato a nós, espectadores, é se seriamos capazes de trocar uma criança que sempre consideramos como filho (e por quem temos fortes laços afetivos), por um filho biológico (um estranho, por um lado, mas por quem temos laços de sangue). E se, de repente, aquele que eu julgava ser “sangue do meu sangue” já não o é… Poderei continuar a amá-lo? Posso transferir o amor que sedimentei por um filho para um estranho (que contudo a sociedade diz ser o destinatário natural desse afeto porque é filho biológico)?
É um pesadelo para os pais terem de escolher entre a força do sangue ou do amor. E é doloroso para o espectador acompanhar essa angústia, bem como assistir à indignação e sofrimento daquelas duas crianças - não deixa contudo de ser interessante constatar que cada uma delas afeiçoara-se à estrutura familiar que sempre conhecera, não obstante alguns desequilíbrios que essa estrutura revelava.
A peça cinematográfica em questão, uma das mais belas que tive a oportunidade de assistir nos últimos tempos, aborda ainda o desequilíbrio das relações familiares nas sociedades atuais, com os homens a tornarem-se estranhos às suas famílias, especialmente aos seus filhos, em nome da carreira e do sucesso. No fundo, pais biológicos que não são verdadeiros pais.
Koreeda acaba por ajudar-nos a obter uma resposta para temas tão difíceis: para se ser pai de alguém não é necessário ter-se o mesmo sangue. É o amor, o afeto e a atenção que se dá ao filho que faz um bom pai.

2. O filme retrata os desafios que se colocam nos dias de hoje à noção de família e parentalidade. Tema de resto em discussão na sociedade portuguesa, a braços que se vê com um (ainda incerto) referendo sobre a adoção de crianças por casais “gay”, qual infeliz materialização do (condenável) aproveitamento político do preconceito ainda existente acerca da homossexualidade.
Se no passado os filhos nascidos fora do casamento (então chamados de ilegítimos) eram uma realidade que o direito teimava em não reconhecer, a par do estigma social, dado estar todo o sistema edificado para tutelar a família legítima, hoje, já vencidas as barreiras do Direito de Família voltado exclusivamente para o matrimónio, outro valor insiste em manter-se, o hétero-patriarcalimo, pelo que a filiação de homossexuais é, atualmente, a categoria a almejar o justo tratamento.
Convicções de ordem moral de caráter subjetivo não podem impedir que uma criança, sem pais nem lar, possa ser integrada numa família, seja esta constituída por pessoas de sexos iguais ou distintos. De resto, possibilitar às crianças o acesso à família é atender a um dos seus direitos fundamentais. O que deve importar, numa decisão de adoção, são as características pessoais dos candidatos à adoção, sua capacidade, emocional e patrimonial; não se devendo considerar a orientação sexual como elemento depreciativo da conduta do sujeito, numa clara visão caricatural e desajustada do gay como bichona irresponsável e sexualmente perversa.
A sociedade contemporânea depara-se com questões que requerem uma postura ativa de esforço e de revisão de pontos de vista antes adotados. Hoje podemos concluir que os laços e o amor entre pais e filhos não derivam simplesmente do vínculo biológico e são independentes da orientação sexual. Da convivência resulta de igual forma essa sublime forma de amar e de ser amado, semente para a personalidade do ser em formação. As famílias, qualquer que seja o seu modelo, apresentam-se na sua complexidade - sendo que a preponderância do amor, do afeto e da solidariedade é o que verdadeiramente interessa.
http://www.correiodominho.com/cronicas.php?id=5668

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