08/04/2014 | Categoria: Artigos
Luiz Schettini Filho*
Os esforços para equiparar em importância as mães que
geram seus filhos com as mães que adotam estes mesmos filhos, esbarram,
quase sempre, em artifícios de ordem psicobiológica. Afinal, todos os
filhos estão vinculados ao processo da geração biológica. Diz-se, muitas
vezes, de forma quase rude, que mãe de fato é a que cria e não a que gera
o filho. Esta é uma situação delicada a se esclarecer sem assumir
interesses pessoais distorcidos. Aqui precisamos tanto de honestidade
intelectual quanto emocional.Acredito que precisamos percorrer um caminho de abrangência maior na compreensão da pessoa como ser-no-mundo como também no que diz respeito à mesma pessoa no estar-no-mundo. É o ser e o estar que dão sentido ao indivíduo como pessoa. Foi Hannah Arendt quem nos chamou a atenção para o fato de que se houvesse apenas um ser humano no mundo, ele não seria pessoa, isso porque o indivíduo só se torna pessoa em um contexto de relação com outro indivíduo (1).
Essas considerações vêm a propósito da definição de papéis entre a mulher que gera uma criança e aquela que assume sua criação. Criar é prover e promover; é suprir um instrumental para a subsistência física e estabelecer caminhos complementares de persistência no mundo. Dito de outra forma: criar o filho é oferecer os nutrientes necessários à manutenção do processo fisiológico da vida, mas também apontar possibilidades de esse filho construir sua pessoalidade, isto é, tornar-se pessoa na convivência com as demais pessoas.
A essa altura o criar se consubstancia no educar. Desse modo, criar e educar compõem a filiação humana. Sem dúvida, não estaríamos longe da verdade se disséssemos que mãe é tanto quem gera quanto quem cria e educa. São três momentos de um mesmo processo. O aprofundamento e a amplitude da compreensão desses momentos indicarão o significado da filiação. É nesse ponto que assumem importância determinante para a qualidade da filiação, o conteúdo e a forma do processo. Aqui não há prevalência entre um e outro: forma e conteúdo são aspectos complementares de um todo. Não seria simples imaginarmos um conteúdo sem forma.
Isso nos remete ao pensamento de que a mãe que gera, como a mãe que cria e educa o filho que não gerou, fazem parte do processo de prosseguimento da vida, embora em momentos diferentes e com significados distintos.
Entretanto, é indispensável que tentemos compreender ou pelo menos sentir a vida dentro do contexto da nossa experiência, levando em conta as circunstâncias que nossas possibilidades permitem.
Duas questões intrinsecamente ligadas nos ajudam a clarear a compreensão no que se refere à filiação humana. A gestação humana abrange dois períodos indissociáveis: a úterogestação e a exterogestação. Ambos se referem, no seu sentido mais amploà vida como a percebemos, isto é, da concepção à terminalidade objetiva como nos dá conta da experiência corporal do existir.
A gestação uterina, mesmo terminada no seu ciclo fisiológico, não teria sentido sem sua complementaridade, que diz respeito a todo o período após o nascimento físico. A parte complementar da gestação, que estamos denominando de exterogestação, compreende a aquisição necessária dos instrumentos físicos e comportamentais para que a vida tenha um significado pessoal. Uma e outra “gestação” coexistem dentro de um contexto relacional. Uma sem a outra carece de significado humano. Que seria de uma criança que, ao nascer, não recebesse os cuidados (suprimentos) imprescindíveis à construção da sua humanidade? Não será estranho dizer que a gestação humana é um processo interminável. Certamente foi com esse pensamento que Adolf Portmann, biólogo suíço (2) cunhou a expressão “útero social”. Sai-se do útero fisiológico e mergulha-se no útero das relações.
Na gestação fisiológica a vida se desenvolve confinada ao corpo materno, em um contexto de interação corporal e emocional da criança com a figura humana que a gerou. Cumprido o período necessário à composição do aparato fisiológico, a criança parte para a gestação social, continuando seu desenvolvimento no grande “útero” do ambiente externo ao corpo onde esteve o tempo de sua “nidação”, isto é, da organização do instrumental necessário ao prosseguimento da vida. Segue a vida na sua longa e individual trajetória, onde uma profusão de fatores se encarrega de moldar as singularidades que vão configurar o rico patrimônio pessoal.
A essa percepção da gestação humana (úterogestação e exterogestação), cabe acrescentar o que Garner e Wenar chamaram de maternalidade -- o que não tem a ver com a maternidade e nem mesmo com a maternagem. A maternalidade, segundo esses autores, se refere à “gratificação materna das necessidades que o bebê tem de cuidados corporais e estimulação agradável através de atitudes que também dão à própria criança momentos de satisfação” (3).
Maternalidade é função de quem cria, no sentido mais extenso do termo. Por essa razão é que a maternidade não é uma função da sexualidade, mas uma função do cuidado. É na confluência dessas vertentes da relação da pessoa com a vida e com a dinâmica da convivência que podemos entender o sentido da filiação humana. As diferenças entre as mães que designamos como biológicas ou adotivas são circunstanciais e não dizem respeito à origem de seus filhos. A origem do filho não está vinculada apenas a componentes biológicos porque, desse modo, estaríamos reduzindo a gestação apenas ao espaço do útero corporal que, sendo importante, é insuficiente e incompleto para caracterizar a pessoa como ser-no-mundo.
A maternalidade tem a ver com o “ser marternal”, atitude complementar da maternidade e da maternagem. A maternalidade abrange tudo o que se refere aos elementos afetivos necessários à formação pessoal do ser humano. Dentre esses elementos assume importância marcante a estimulação tátil como experiência fundamental e necessária ao desenvolvimento corporal do indivíduo. O contato físico nos primeiros anos de vida e, até na vida adulta, é nutriente necessário ao estabelecimento de relações saudáveis de convivência, ambiente indispensável para a formação de vínculos afetivos em todos os níveis, sobretudo nas ligações de natureza parental.
Sabemos, por exemplo, que perturbações psicossomáticas ocorrem com mais frequência em crianças carentes de relações de maternalidade. Na prática, afagos, carícias, aconchego, abraços e formas pessoais de acolhimento corporal são essenciais à construção do apego afetivo que caracteriza a convivência parental.
É, portanto, na expressão da maternalidade que se configura a filiação no seu sentido existencial.
“Ser humano” (qualidade do ser) é condição imprescindível do “ser humano” (designação do ser). A humanidade do ser é o que qualifica o ser vivo descrito como humano para diferenciá-lo dos demais seres vivos. Por essa razão, não podemos limitar a condição da filiação simplesmente a fatores estritamente biológicos.
Carregamos um suprimento cultural de amplitude sufocante ao introjetarmos a ideia de que o “filho” é aquele que provém apenas de uma parte do que define a pessoa, isto é, o lado biológico de sua existência. Como dissemos anteriormente, a completação do “ser pessoa” exige a incorporação de outros instrumentos indispensáveis à possibilidade de permanência no mundo.
O lado biológico da pessoalidade é o fundamento sem o qual o arcabouço relacional da vida não chegaria sequer a existir, assim como a relação com o contexto ambiental não teria sentido, até porque careceria de uma estrutura para se expressar.
A importância do biológico em nossa cultura humana está tão cristalizada que pensamos estar infringindo uma lei da Natureza quando afirmamos que o filho é como um ser que só se configura como pessoa após seu nascimento fisiológico e a consequente completação no processo relacional de ser. “Afinal o ser humano e a vida humana são uma só coisa” (4).
Que diríamos do processo de “fertilização in Vitro”, isto é, quando um óvulo é fecundado fora de um corpo humano? Nesse caso, ocorrendo a fecundação fora do corpo humano, não nos causaria mais estranheza. E não me consta que questionemos a descaracterização da humanidade de uma criança gerada nessas circunstâncias. Talvez porque, no fim das contas, ela entraria no corpo de uma mulher para, posteriormente, sair triunfalmente como filho.
Sem dúvida, a filiação não é uma função restrita ao biológico, mas a conjunção do biológico com o relacional após o parto uterino.
A essa altura, a ideia do biólogo Humberto Maturana (5) nos auxilia a “humanizar” a filiação, quando nos diz que a pessoa humana não é predeterminada apenas pela sua composição biológica, mas sim codeterminada, o que leva em conta o contexto biológico e ambiental, isto é: será sempre necessária a interação entre o biológico e o mundo das outras pessoas.
O filho só é verdadeiramente filho quando se torna a resultante do processo biológico e o da vinculação afetiva consequente das relações de cuidado, processo esse que pode ocorrer com os que o geram ou com aqueles que o acolhe na criação e na pedagogia afetiva que lhe dão a oportunidade de seguir sua trajetória como ser de humanidade.
A filiação humana será sempre e necessariamente bipolar, para o que concorrem a geração biológica e a adoção afetiva.
* Luiz Schettini Filho – psicólogo, filósofo, teólogo; terapeuta de crianças, adolescentes e adultos, especialista em adoção; autor de 20 livros sobre relações interpessoais e familiares, entre eles, 6 livros abordando o tema da adoção; conferencista nacional e internacional; professor universitário aposentado; pai adotivo.
Referências bibliográficas:
(1) ARENDT, H. (2002), A Vida do Espírito. Rio de Janeiro. Relume Dumará.
(2) CARUSO, I. (1981), A Separação dos Amantes: uma fenomenologia da morte. São Paulo. Cortez.
(3) MONTAGU, A. (1988), Tocar: o significado humano da pele. São Paulo. Summus.
(4) MELLO FILHO, J. (2001), O Ser e o Viver: uma visão da obra de Winnicott. São Paulo. Casa do Psicólogo.
(5) MATURANA, H.R. (2001), Cognição, Ciência e Vida Cotidiana, Belo Horizonte, UFMG.
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