quinta-feira, 17 de outubro de 2013

ADOÇÃO: SEIS MAIS UM NÃO SÃO SETE


Raquel Prudente Neder Issa
Advogada e integrante do Grupo Voluntário de Apoio à Adoção Maria Fumaça, de São João del Rei

A notícia de que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu pela devolução de uma criança aos pais biológicos, depois de mais de três anos com a família adotiva, em Contagem, deixa desolada e preocupada toda a sociedade brasileira. Correto que os seis irmãos, que sempre viveram num abrigo, retornem ao ambiente familiar se esse atualmente se mostra adequado. Mas a história não é a mesma com a sétima criança. E nunca poderá ser.
De minha parte, pensei que demoraria a ver de novo o show dos horrores a que assistimos no ano passado em Monte Santo (BA). Mais ainda, imaginei que a série de erros daquela história, que ganhou repercussão nacional, pudesse ter servido de lição de como não devem ser conduzidos os processos de adoção. Mas não, a história se repete, prestando um enorme desserviço à causa da adoção e ferindo de morte a expressão “prioridade absoluta”, trazida pela Constituição Federal ao se referir às crianças e aos adolescentes.
Não tive acesso aos autos do processo, que tramita em segredo de justiça. Tomei conhecimento da história apenas pelo que foi noticiado pela imprensa, mas acredito que isso seja o bastante para tecer alguns comentários. Depois de alguns anos estudando e vivenciando a adoção, tenho como certo que a biológica é apenas uma das formas de se construir uma família. Outra é por meio da adoção, quando você escolhe (ou é escolhido?) formar uma família e assim o faz, de maneira tão intensa e tão legítima quanto a genética.
Dessa forma, já vejo com estranheza essa insistência da lei e dos tribunais em insistir nos laços biológicos, em situações em que resta evidente que eles não são os mais favoráveis e seguros. Acredito e defendo que toda família deve ter direito à ampla defesa e que o Estado deve dar condições de reestruturação, através de políticas públicas, tratamentos de saúde para combate ao alcoolismo e à toxicomania e oferta de empregos. E entendo também que a todos deve ser dada uma segunda chance.
No entanto, o essencial é que crianças não podem crescer nos abrigos, longe do apoio fundamental de uma família, enquanto aguardam a reestruturação de seus genitores, em processos que se eternizam e, na maioria das vezes, têm resultados negativos. E aí, normalmente depois de anos, quando se chega à conclusão de que não há mesmo chance de reinserção na família de origem, aquela criança cresceu e dificilmente será adotada. Isso porque, enquanto esperava, se distanciou do perfil que é o procurado pela grande maioria dos adotantes: recém-nascidos ou com o máximo de dois anos de idade. Na espera que pudesse retornar à família biológica, perdeu sua chance de ser acolhida como filha numa família adotiva, que a desejou, que se preparou e provou ter condições de “ser família”, uma vez que passou por um rigoroso processo de habilitação para adoção, que é feito pelas Varas da Infância e da Juventude.
O descrito acima é absurdo, mas ainda encontra justificativa nas dificuldades do Estado, escassez de recursos, falta de equipes técnicas maiores e todas aquelas mazelas tão comuns e que há muito viraram álibi para qualquer questão.
Muito pior com isso, é mandar às favas a segurança jurídica, ignorar os laços de afeto e permitir que uma criança, cuja única família que conheceu foi a adotiva, seja inserida numa família genética que, num belo dia, depois de uma série de maus tratos e negligências, acordou e lembrou que tinha filhos e que os queria de volta! Como assim? E o melhor interesse da criança? E o direito daqueles que seguiram a lei, passaram por um processo de habilitação, esperaram por anos numa fila e, finalmente, receberam a filha em adoção, acolheram, amaram e garantiram a ela a família que, constitucionalmente, lhe é assegurada?
Num cenário cuja aberração acima é permitida, quem terá coragem de adotar, sabendo que, a qualquer momento, pode perder seu filho? É esse o tipo de estímulo que estamos dando à adoção? Não! Medidas como essa vão de encontro a tudo que vem sendo heroicamente realizado por centenas de grupos voluntários de apoio à adoção, espalhados por todo o país. Pessoas que tentam fazer valer verdadeiramente, tanto o direito das crianças e dos adolescentes quanto o das famílias adotantes, que se sentem ameaçadas e desestimuladas sempre que têm notícias de casos como o de Contagem. E que tentam combater o preconceito, derrubar mitos e estimular a adoção de adolescentes, negros, grupos de irmãos, portadores de deficiência e todos os outros que, por um motivo ou por outro, não se enquadram no perfil mais buscado, mas que são sujeitos de direito e merecem e devem ter suas famílias, além de receber o afeto, a segurança, a dignidade e tudo mais que é necessário para um desenvolvimento saudável, assim como está escrito lá na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Espero e desejo, sinceramente, que o caso de Contagem não tenha o mesmo fim do de Monte Santo, em que as crianças voltaram para a mesma situação de risco de onde saíram, deixando os pais adotivos despedaçados, órfãos de seus filhos e descrentes na Justiça. E principalmente que não sejam subestimados os laços afetivos, que formam famílias e que reconstroem a dignidade de crianças e adolescente antes tão violados em seus direitos e em seus sentimentos.
Não custa repetir, que é perfeitamente plausível que os irmãos, que viveram durante todo esse tempo em um abrigo, sejam reinseridos no ambiente familiar. Entretanto, o mesmo não se aplica à menina adotada. Ela já tem a família dela e, a essa altura, tirá-la do lar que sempre reconheceu é uma violência sem tamanho contra ela, contra a família adotiva, contra a sociedade e contra o estado democrático de direito.
http://gvadmariafumaca.blogspot.com.br/

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