quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

AMOR EM DOBRO



Adoção de crianças com deficiência torna-se realização e felicidade de muitas mães e famílias. Acompanhe as experiências
Por Jussara Goyano (Reportagem de Marina Werneck)

Segundo o Cadastro Nacional de Adoção, criado pelo governo há 3 anos, aproximadamente 40 mil crianças e adolescentes vivem em abrigos em todo o País. Cerca de 5 mil deles, apenas, estão aptos à adoção e aguardam seu destino, que é decidido pelas Varas da Infância, Juventude e do Idoso espalhadas pelos municípios. O quadro de quase 30 mil casais na fila de espera de adoção seria um grande alento, não fosse o perfil exigido pelas famílias para as crianças a serem adotadas.
Enquanto mais de 45% dos menores para adoção são pardos e quase 80% deles têm irmãos, em uma maioria de crianças em idade avançada e grande número de adolescentes e meninos, segundo dados do CNA divulgados em maio deste ano, os pretendentes a pais têm preferência por meninas brancas, com idade menor de 3 anos e adoções únicas (que não incluem os menores com irmãos) - a contra-mão de um final feliz. O que dizer, então, da rara opção dos proponentes por se tornarem pais de menores com deficiência?
Felizmente, há belas exceções. Histórias que poderiam se repetir com mais frequência, se não houvesse tanta desinformação acerca da rotina de pais de filhos com deficiência. O trabalho é praticamente igual ao da criação de um filho que não apresente tal questão, garantem os pais que passam pelo dia-dia de cuidados médicos e psicológicos de crianças e jovens que necessitam de atenção especializada. Um cotidiano superado pelo carinho e disposição em cuidar.
É o que pensa a paulista Carla Cristina Penteado, 39 anos, que adotou as meninas Marcela (10), Luana (5) e Rafaela (2) - todas com deficiência. "Sofri muito preconceito, muito. Dos pais 'especiais', o que é doloroso. Eu já ouvi de mãe que 'ainda bem que eu adotei, porque assim eu não carrego o peso de ter parido uma criança assim' - frases extremamente fortes eu já escutei", revela, porém.

APROXIMADAMENTE 40 MIL CRIANÇAS E ADOLESCENTES VIVEM EM ABRIGOS EM TODO O PAÍS

Mas Carla foi adiante na adoção, porque, para ela, o amor, o 'ser mãe' é o que importa. "As pessoas não entendem que para mim não faz diferença, elas querem saber o porquê, o motivo que me levou a adotar, e não tem porquê nem motivo. Simplesmente para mim não faz a menor diferença", diz . "Se tivesse vindo uma criança normal eu também teria adotado, entendeu? Mas quando você abre o perfil para uma criança 'especial', só vem criança 'especial'. Apareceram e já eram minhas filhas."
Era preciso que fosse assim, mesmo - com muita vontade de ser mãe e amor incondicional para dar - porque o processo legal para adotar uma criança, seja com ou sem deficiência, é moroso e cheio de pormenores. São muitas etapas: fazer o cadastro, ter a documentação, fazer o curso de adoção, entrevista com assistente social, com psicóloga, e, se tiver necessidade, outras entrevistas. Mesmo que criança e possíveis pais já se conheçam, como na primeira adoção de Carla.

"Eu comecei ao contrário - conheci a Má [Marcela] antes de querer adotar. Conheci por acaso, numa festa em um abrigo, e fiquei encantada por ela. Aí fui atrás da documentação, fui ao Fórum e perguntei o que eu precisava. Eles me passaram uma lista, precisava de várias coisas, inclusive, comprovante de residência. Eu teria que mudar pra cidade do Nordeste onde eu adotei a Má. Aí eu tomei a decisão de mudar", conta Carla. Mas a medida teve implicações não tão positivas no trâmite da adoção de Marcela.
"Fui hiper-rápida, mas eu fui muito mal interpretada", lembra a então, na época, apenas proponente à posição legal de mãe da menina. "Essa decisão foi interpretada como falta de responsabilidade e não como vontade de adotar. Tudo foi questionado, a minha unha comprida vermelha, os saltos que eu usava, tudo era empecilho para eu ser mãe de uma criança 'especial'", lamenta Carla. "O processo legal foi muito difícil!"

O PROCESSO LEGAL PARA ADOTAR UMA CRIANÇA, SEJA COM OU SEM DEFICIÊNCIA, É MOROSO E CHEIO DE PORMENORES. SÃO MUITAS ETAPAS: FAZER O CADASTRO, TER A DOCUMENTAÇÃO, FAZER O CURSO DE ADOÇÃO, ENTREVISTA COM ASSISTENTE SOCIAL, COM PSICÓLOGA, E, SE TIVER NECESSIDADE, OUTRAS ENTREVISTAS

Carla partiu, depois, para a adoção da segunda criança, mas não conseguiu: "Ela acabou morrendo no meio do processo, e eu fundei o grupo ATE (Adoção Tardia e Especial) [uma ONG] por isso, para juntar os pais, para acolher, dar advogado, dar o que os pais precisassem. Nós já fizemos 75 adoções até hoje, em 6 anos", relembra e explica. Mas as adoções de Luana e Rafaela se sucederam, desta vez com final feliz. "A Marcela veio com 7 meses para a minha casa, a Luana com 1 ano e 4 meses e a Rafaela com 2 meses - eu a amamentei, ela veio muito pequenininha."
Sobre a razão de tantas adoções, Carla apenas comenta do encanto pela primeira filha, que conheceu antes de iniciar o processo para adotá-la. A segunda adoção, ela lembra, tinha medo de que interpretassem como uma adoção para obter um irmão/ irmã cuidador (a) da primeira filha. "Eu tive contato com outros pais de crianças 'especiais' e eu percebia que eles criavam o segundo filho pra ser criador e eu não achei justo adotar uma criança para ser cuidador (e eu não queria ter um filho só)", lembra Carla.
Aí o marido, Marcelo, teve a ideia de adotar outra criança com deficiência. A terceira adoção deu-se pela vontade de Carla de ter três filhos. "Meu perfil era bem amplo, era menina com qualquer deficiência até 4 anos" - conta, sobre seu cadastro em mais um processo para adotar uma criança. E, assim, ela chegou à Rafaela.

A ESCOLHA DE DOWN
Criança acima de três anos, com deficiência, parda. E especificamente com Síndrome de Down. Nesse caso, Alisson Galinari, com 5 anos na época, deu muita sorte de ter esse perfil. Estava dentro do que Luciana Ramos Galinari Rossi, 41 anos, de Penápolis (SP), queria, embora tais características não sejam as mais procuradas nas listas de adoção. "Então a gente resolveu adotar, e a nossa escolha foi uma criança com Síndrome de Down", lembra Luciana, da decisão muito pensada com a família.
Ela adotou o garoto, hoje com 7 anos. E, apesar da dificuldade em encontrar pais para crianças com o perfil de Alisson, e de ela e o marido estarem ali, "dando sopa" como nenhuma outra família normalmente dá para esse tipo de adoção, o processo só não foi mais moroso, porque contou com a ajuda de Carla Penteado e da ONG ATE.

O GRUPO ATE (ADOÇÃO TARDIA E ESPECIAL) FOI CRIADO PARA JUNTAR OS PAIS, PARA ACOLHER, DAR ADVOGADO

A entrada nos documentos foi dada. "Isso em fevereiro, e, em abril, ela [Carla] me ligou dizendo que tinha o Alisson. Ela que o achou o para nós, e a gente não tava habilitado ainda, aí foi uma correria para tentar agilizar o processo", conta a mãe de Alisson hoje. Luciana lembra as inúmeras fases para chegar a esse status: "Até você estar habilitado ou não, é um processo longo. O nosso demorou nove meses, o que foi rápido, até, eu achei", diz Luciana. Mas enfatiza: "normalmente é mais de um ano".
"O Alisson tinha 5 anos e meio. A gente conheceu ele aqui em São Paulo, já com o processo de habilitação em mãos. A gente ficou com ele no sábado e no domingo, e na segunda foi no Fórum e, para a nossa surpresa, o oficial liberou, e a gente já trouxe o Alisson com a guarda provisória", narra Luciana, sobre o que seria um dos melhores momentos de sua vida em família. "Então foi uma viagem maravilhosa. Vai fazer dois anos em Outubro que ele já está com a gente - já saiu a guarda definitiva, ele já está com nosso nome, a certidão de nascimento dele já é nossa."
Sobre a opção por um filho com Síndrome de Dow, assim, tão especificamente, Luciana conta que, com seu marido, em sua cidade, conheceu uma moça de 30 anos com síndrome de Down, e desde então eles se apaixonaram: "Era aquele perfil de criança que a gente queria. Tanto que eu posso ter filho, eu tomo remédio para evitar, mas a nossa opção, mesmo, foi uma criança com Síndrome de Down". E nem chegaram a cogitar outra deficiência ao longo do processo de adoção. "Já estava preparada, e os nove meses de processo serviram para amadurecer mais a idéia e para a gente ter certeza que queria isso mesmo."

LITÍGIO E OBSTÁCULOS
A paulistana Paula Cury, 43 anos, com os filhos Laura (15), Alexandre (13), Maria Eduarda (7), Rodrigo (6) e Maria Luiza (4), enfrentou às duras penas um processo para a adoção de Rodrigo, que tem paralisia cerebral. Já Maria Eduarda tem hidroanencefaliam que é a hidrocefalia com perda de massa encefálica. No caso de Duda, como carinhosamente é chamada, há também macrocefalia, que é a cabeça aumentada.
"A gente brigou um ano e meio, mas eu consegui a guarda, ele tá super bem", comenta Paula sobre a adoção de Rodrigo. O menino veio para sua nova família como cadeirante, e sem desenvolvimento cognitivo. "Hoje a gente estimulou muito, muito, mesmo, e ele tá andando, tá aprendendo a ler sozinho. Então ele ultrapassou qualquer tipo de expectativa que a gente pudesse ter em relação a ele". A filha Duda teve uma adoção também cercada de problemas. Mas um destino não menos feliz do que Rodrigo.
"Na verdade eu fui para amadrinhar a Duda num projeto de apadrinhamento afetivo, só que eu saí do abrigo querendo adotar", narra Paula. No abrigo, "eu fiquei lá, conversando com ela, segurei sua mão e de repente ela começou a rir, ela riu do nada. E na hora de eu ir embora, começou a chorar, e a psicóloga do abrigo falou que nunca tinha visto a Maria Eduarda chorar. Aí falei que ia adotar a Duda. Ela que me escolheu, com certeza", emociona-se Paula.
"Em 15 dias que ela está em casa, a evolução é super visível, a postura, a comunicação. Dizem que ela só sente e que só tem reflexos, mas não é verdade, ontem a noite ela fez birra porque não queria dormir. E quando eu falo para ela que vamos tomar banho, ela ri porque ela sabe que vai tomar banho", compartilha a mãe de Duda.
E segue contando sobre os obstáculos na adoção da menina. "Eu tive muito problema no abrigo, começaram a me boicotar quando eu disse que queria adotar a Maria Eduarda. Eu ia lá no dia da visita e eles diziam que as crianças estavam com virose, então não dava para entrar. No outro dia diziam que eu estava no horário errado, no outro eu ficava uma hora e eles me expulsavam, literalmente - os pais tinham direito a duas horas de visitação", relembrou.
Mas nada deteve Paula: "Eu não sei se era uma questão financeira, se foi uma questão de cuidados, de acharem que 'como uma pessoa pode querer adotar uma criança com tanta dificuldade, com tantos problemas?'. Tanto que teve uma reunião que nós fizemos com a coordenação do abrigo e a coordenadora do abrigo chegou para mim e disse: 'Paula, escolhe qualquer outra criança para você. Eu te dou qualquer outra criança daqui de dentro com menos problemas que a Maria Eduarda', e a minha vontade foi de pular no pescoço dela, porque eu não tava no mercado, eu não estava lá para escolher...".

O PROCESSO DEMOROU NOVE MESES, NORMALMENTE É MAIS DE UM ANO

Após tantas dificuldades e tamanha perseverança, Paula realmente não sabe explicar porque decidiu por esse tipo de adoção, embora o contato com organizações que cuidam de adoção e deficiência viesse ocorrendo há algum tempo. "Não sei dizer o que me levou a colocar lá na ficha que eu aceito crianças com deficiência. Foi uma coisa assim: eu posso. Não vejo problema nisso, eles precisam de mãe e eu quero, preciso de um filho."
Após a realização como mãe de Duda e Rodrigo, e das outras crianças, um desafio ainda precisa ser vencido: a relação familiar. "Minha família se afastou com essa última adoção. Eles me forçaram, de certa forma, a tomar uma atitude de encontrar alguém que esteja disposto a ser tutor dos meus filhos, porque já me disseram que nenhum deles vai assumir se acontecer alguma coisa comigo", conta Paula. "Eu tô providenciando isso."

SERVIÇO
Grupo ATE - Adoção Tardia e Especial
Contato- carla_penteado@hotmail.com

Em festa: Famílias adotivas auxiliadas pela ONG ATE se reúnem em aniversários e ocasiões especiais
A família do pequeno Alisson: escolha amadurecida e guarda definitiva
Carla, com seus filhos adotivos e marido: ONG para ajudar outras mães
Adoção de Maria Eduarda (no carrinho, com a nova família) foi cheio de entraves colocados pela instituição que a acolhia
http://revistasentidos.uol.com.br/inclusao-social/72/artigo271765-1.asp

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