Tenho
sido frequentemente instado para me pronunciar a respeito de fatos recentes que
vêm ocupando destaque na mídia nacional sobre casos concretos que tramitam no
Judiciário de diversos estados brasileiros, mas sempre me neguei, argumentando
com as restrições que são impostas a todos os magistrados pela Loman e pelo
Código de Ética da Magistratura para justificar que em situações judicializadas
só posso me manifestar em sala de aula ou em texto acadêmico. Entretanto, em
razão da insistência, optei por realinhavar e concatenar, em um único texto,
antigos escritos de minha lavra, nos quais já havia antevisto os problemas e me
posicionado muito antes de tais casos acontecerem.
Há
coisas que o senso comum tende a entender de forma absolutamente
dogmática. A de que um juiz deve saber interpretar
as leis é uma delas.
Todavia,
como outrora já destaquei, as normas, às vezes, pecam por ambiguidade, dubiedade,
vagueza, etc.; a ordem da escrita pode ser direta ou inversa; o texto pode
conter uma ironia, ou uma metáfora. Mais ainda, a interpretação pode ser
gramatical (literal), teleológica, sistemática, além de inúmeras outras
variáveis que não consubstanciam o objetivo deste texto.
É
exatamente em razão disso que, por vezes, nos deparamos com interpretações
absolutamente antagônicas e culminamos por admitir que nenhuma delas é
desarrazoada.
Lamentavelmente,
são poucas as faculdades de Direito que oferecem em suas grades curriculares a
cadeira “Hermenêutica Jurídica”, e, assim mesmo, quando tal ocorre, em
disciplina eletiva. Durante a graduação os alunos são “orientados” (sic) para
priorizarem o estudo do direito civil, penal, processual, trabalhista,
empresarial, etc. Em fim, pragmaticamente aqueles ramos que podem abrir as
portas do exercício da advocacia, e, com isso, transformá-los em “profissionais
do direito”.
Se
depois são aprovados em concurso de juiz de direito (ou são agraciados com uma
vaga no “quinto constitucional” em um tribunal) têm dificuldades para se
apartarem dessa visão unilateral do mundo e sopesarem com a mesma medida as
diversas variáveis que cada caso incorpora.
No
denominado “Direito da Criança e do Adolescente”, para minimizar os riscos que
uma interpretação equivocada pode causar, o ECA verticalizou o conceito
interpretativo da Lei de Introdução ao Código Civil quando expressamente assim
dispõe no artigo sexto: “Na interpretação desta lei, levar-se-ão em conta os
fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e
deveres individuais e coletivos e a
condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.(grifei!)
Este
dispositivo, entretanto, parece que não tem sido lido com frequência por alguns
julgadores por ocasião da prolação de suas decisões. Ou, se o leem, não lhes
dão a devida atenção e entendimento.
Dentre
inúmeros aspectos que exigem um rigoroso estudo do caso concreto, no âmbito dos
processos que envolvem a perda do poder familiar, e, quando for o caso, a
inclusão da criança/adolescente em família substituta, cuido de destacar alguns
dispositivos legais que não podem ser aplicados literalmente, sob pena de
agravar situações que já são, pela própria natureza, dramáticas.
I-
Lapso
temporal máximo de permanência em acolhimento institucional, pois, em que pese
a expressa previsão legal dos dois anos, casos há que, inexoravelmente, ele
haverá de ser dilatado por falta de alternativa, cabendo aos operadores do
direito, e ao juiz em particular, apenas registrar todas as suas intervenções
realizadas e não exitosas para mudar o estado das coisas;
II-
Não
separação de grupo de irmãos, pois em grandes grupos fraternos, notadamente
quando muito diferentes as faixas etárias e os acolhimentos acontecem em
instituições distintas, o não fracionamento pode significar a condenação de
todos a não terem o direito à convivência familiar;
III-
Preferência
do acolhimento familiar sobre o institucional, pois, se não se levar em conta
peculiaridades como faixa etária, tempo provável de permanência, etc., o
primeiro pode ser mais danoso que o segundo, pois amplifica riscos de laços de
afetividade e o sentimento de uma nova rejeição para a criança, quem sabe com
danos psicológicos irreversíveis;
IV-
Expansão
das hipóteses legais de adoção “intuitu personae”, a pretexto de
excepcionalidade, quando, no mais das vezes, o que se observa são ardis para
burlar o Cadastro Nacional de Adoção-CNA, utilizando-se a chancela do
Judiciário para o alcance dos objetivos imediatistas, descurando daqueles que
republicanamente aguardam na fila a sua vez de adotar;
V-
Entrega
de crianças e adolescentes em guarda, antes da conclusão da destituição do
poder familiar dos seus genitores, em mera suspensão deste poder/dever, pois os
riscos de eventual modificação da decisão do 1º grau recairão integralmente na
pessoal do guardião, que foi chamado para assumir o “múnus” como pretendente à
adoção integrante do cadastro, mas, na prática, tem apenas a condição de “termo
de responsabilidade à pessoa idônea”(art. 157 ECA). Isto pode até desafogar as
instituições de acolhimento e diminuir as pressões para agilizar a tramitação
no Judiciário, mas também pode vir a ser a morte em vida para os infortunados
pais que recebem uma ordem judicial para devolver seu filho. Como já disse
antes, a sociedade civil precisa se mobilizar para exigir que o princípio da
razoável duração do processo seja uma realidade nas questões afetas à infância
e juventude em todas as varas e não apenas em algumas delas;
VI-
Finalmente,
a polêmica respeitante a preferência da família natural sobre a família extensa
e dessa sobre a família substituta, com as seguintes considerações:
V.I)
Em primeiro lugar, é preciso se registrar que é falso o suposto conflito entre
“família natural X família substituta”, pois não existe um exército de pessoas
querendo tomar crianças que se encontram no seio de suas famílias biológicas,
cuidadas e tratadas com amor, independentemente de condição econômica, raça,
gênero, etc., pois o esforço tem sido integralmente voltado para minimizar a
institucionalização prolongada de infantes e jovens, reduzindo tais
circunstâncias aos casos indispensáveis e pelo menor lapso de tempo possível.
Para os casos em que não é possível o restabelecimento de laços com as famílias
biológicas, a família adotiva é inquestionavelmente a solução;
V.II-
Ninguém questiona que preferencialmente um filho deva permanecer com sua
família natural e que, se por qualquer motivo, não pode ele ficar com o pai e a
mãe, ou um deles, é melhor que fique com avós, tios, irmãos mais velhos,
primos, etc.
V.III-
O que está em jogo e se saber até quando se deve esperar(tentar) que este
“dever ser” venha a ser materializado. Ao meu pensar, não faz sentido que se
espere longos períodos para que os genitores deixem as drogas, se estabilizem
financeira ou emocionalmente, obtenham emprego, etc., pois, se assim for,
estaremos priorizando os interesses dos adultos em detrimento dos das crianças,
negando o que diz a Constituição da República e o Estatuto. Igualmente não
parece ser razoável se entregar uma criança a parentes apenas em razão de laços
sanguíneos, quando eles nunca haviam se manifestado pela desistitucionalização,
nem mesmo realizavam visitas e o estão recebendo apenas para atender uma ordem
judicial ou uma “sugestão” do Ministério Público ou de um psicólogo ou
assistente social do Juizado.
Quando
se cruza essas circunstâncias com aquela apontada no item IV e acontece da
criança já se encontrar na posse de fato de um casal que a ama, cuida
adequadamente, a reconhece como filha e esta ver o casal como seus pais, salvo
se houve má fé na obtenção da guarda, tudo recomenda a máxima cautela para que
não se priorize o sangue sob o afeto e se cause danos emocionais irreversíveis
à criança, comprometendo o seu futuro; o desespero dos pais adotivos e o
descrédito no instituto da adoção.
LUIZ
CARLOS DE BARROS FIGUEIRÊDO
COORDENADOR
DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DO TJ-PE