quarta-feira, 6 de março de 2013
“Muitas
coisas que nós precisamos podem esperar. A criança não pode. Agora é o
tempo em que seus ossos estão sendo formados; seu sangue está sendo
feito; sua mente está sendo desenvolvida. Para ela nós não podemos dizer
amanhã. Seu nome é hoje”. (Gabriela Mistral)
Em
1990 o Brasil, de maneira inédita no mundo, aprovou o Estatuto da
Criança e do Adolescente, considerada uma das leis mais avançadas do
mundo. Passaram-se 21 anos e mesmo a Lei estando na maioridade ainda não
conseguiu cumprir um dos direitos fundamentais, o direito de toda
criança à convivência familiar e comunitária. Os abrigos
continuam repletos de crianças e adolescentes “filhos de ninguém”, nem
mesmo filhos do Estado, pois a maioria dos abrigos do país é mantida com
recursos privados. Viver em uma instituição significa estar alijado do
direito de ser amado e de amar, relevando o abismo entre as intenções
das leis e a vida real.
Em
verdade, a institucionalização de crianças tem se mostrado não como uma
alternativa, mas como um incentivo ao abandono. O acolhimento
institucional acarreta mais danos do que benefícios para a maioria das
crianças e adolescentes devido as muitas características negativas para o
desenvolvimento do ser humano: limitação de interação da convivência
social; invariabilidade do ambiente físico; planejamento das atividades
externas à criança, com ênfase na rotina e na ordem; vigilância
contínua; ênfase na submissão, silêncio e falta de autonomia.
O
problema é tão sério que atualmente, em pleno século 21, sequer se sabe
quantas crianças abrigadas existem no Brasil. Há 10 anos falava-se em,
no mínimo, 500 mil crianças institucionalizadas. Em 2008 o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, órgão governamental) fez uma pesquisa
com todos os Abrigos que recebiam fundos federais (uma minoria diante
de todos os abrigos que existem) e chegou a um numero que passou a ser
repetido: 80 mil crianças e adolescentes abrigados. Em 2009 foi criado o
Cadastro Nacional de Adoção, para centralizar os adotantes e as
crianças e adolescentes “disponíveis para adoção”. A idéia é boa e
previa uma centralização e agilização do processo. No entanto, passou a
apresentar dados enviesados, pois os 80 mil abrigados desapareceram e
agora fala-se que há “apenas” 5 mil crianças disponíveis” e mais de 20
mil adotantes. Alguma coisa está errada nessa conta? De repente, não se
fala mais dos 80 mil abrigados que ficaram de lado, mais uma vez no
limbo do esquecimento, uma espécie de "caixa-dois" do abrigamento. Será
que se não falarmos deles o problema deixará de existir? Somente aquelas
crianças cujos pais foram destituídos do Poder Familiar é que entram no
cadastro e sabe-se por depoimentos sistemáticos que o CNA não é
alimentado pela maioria absoluta dos Juizados do país. Entre outro
problemas, já cansei de ouvir que a maioria dos operadores da adoção
não faz a destituição do Poder Familiar de milhares de crianças porque
não "tem perfil para serem adotadas”. A maioria dos abrigados não tem
sequer processo em centenas de abrigos. Cada abrigo que tenho visitado,
ou ouvido relatos, tem cerca de 5 a 10% de crianças "disponíveis para
adoção", o mesmo percentual de duas décadas atrás quando fizemos a
pesquisa que gerou o livro "Filhos da Solidão".
Mas,
pelo menos no início da década de 90 se falava que era preciso resolver
o problema de todas as crianças e adolescentes abrigados, e atualmente o
discurso mais parece um disco riscado, pois somente se fala que existem
“apenas 5 mil abrigados” e “os adotantes é que são muito exigentes, só
querem crianças brancas e saudáveis etc. e tal”. Tenho compilados
inúmeros relatos de pretendentes à adoção que querem, sim, adotar
crianças especiais, crianças maiores, crianças com HIV e mesmo assim
amargam uma espera irritante e encontram dificuldades incompreensíveis
em alguns Juizados do país. Ao contrário de países desenvolvidos que
praticamente extinguiram as instituições de abrigamento, em nosso país
elas ainda persistem incólumes, e o lento caminhar é acrescido de uma
série de dogmas e psicologismos que vão contra as pesquisas recentes
sobre o tema: "o adotante não pode visitar abrigos", "o pretendente não
pode adotar se perdeu um filho", "não pode adotar crianças menores de 12
anos se for homossexual", "não pode trabalhar em um abrigo e querer
adotar", "não pode adotar criança especial porque deve querer alguma
coisa com isso", "não pode isso, não pode aquilo...". E as crianças
continuam esperando... e sonhando em viver em família e em comunidade.
Quando ficam bem grandes, depois de o sistema insistir por muito tempo
em procurar qualquer parente nesse imenso Brasil, mesmo que o parente
nem conheça a criança e muito menos queira ficar com ela, algumas
crianças entram para o cadastro....
Os
desafios que devemos enfrentar atualmente é não deixar as crianças
envelhecer nas instituições e conscientizar os brasileiros sobre as
adoções necessárias: crianças mais velhas, negras e pardas e com
necessidades especiais. O trabalho principal é pedagógico, de
conscientização da população e técnico, de preparação de profissionais
que acolham e preparem pessoas dispostas a acolher uma criança ou um
adolescente. É um trabalho gigantesco e a longo prazo, e por isso, o
sistema deve apoiar e valorizar pretendentes à adoção que justamente
deixam seus preconceitos de lado e mostram desejo e condições para
realizar as adoções necessárias.
*Lidia Weber é professora
e pesquisadora do Departamento de Psicologia da UFPR e do Mestrado e
Doutorado em Educação pela UFPR; Psicóloga pela UFPR, Mestre e Doutora
em Psicologia pela USP e pós-doutora em Desenvolvimento Familiar pela
UnB.
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