sábado, 23 de março de 2013

O DIREITO DE SER FILHO

quarta-feira, 6 de março de 2013

por Lidia Weber*

Muitas coisas que nós precisamos podem esperar. A criança não pode. Agora é o tempo em que seus ossos estão sendo formados; seu sangue está sendo feito; sua mente está sendo desenvolvida. Para ela nós não podemos dizer amanhã. Seu nome é hoje”.   (Gabriela Mistral)
Em 1990 o Brasil, de maneira inédita no mundo, aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerada uma das leis mais avançadas do mundo. Passaram-se 21 anos e mesmo a Lei estando na maioridade ainda não conseguiu cumprir um dos direitos fundamentais, o direito de toda criança à convivência familiar e comunitária. Os abrigos continuam repletos de crianças e adolescentes “filhos de ninguém”, nem mesmo filhos do Estado, pois a maioria dos abrigos do país é mantida com recursos privados. Viver em uma instituição significa estar alijado do direito de ser amado e de amar, relevando  o abismo entre as intenções das leis e a vida real.
Em verdade, a institucionalização de crianças tem se mostrado não como uma alternativa, mas como um incentivo ao abandono. O acolhimento institucional  acarreta mais danos do que benefícios para a maioria das crianças e adolescentes devido as muitas características negativas para o desenvolvimento do ser humano: limitação de interação da convivência social; invariabilidade do ambiente físico; planejamento das atividades externas à criança, com ênfase na rotina e na ordem; vigilância contínua; ênfase na submissão, silêncio e falta de autonomia.
O problema é tão sério que atualmente, em pleno século 21, sequer se sabe quantas crianças abrigadas existem no Brasil. Há 10 anos falava-se em, no mínimo, 500 mil crianças institucionalizadas. Em 2008 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, órgão governamental) fez uma pesquisa com todos os Abrigos que recebiam fundos federais (uma minoria diante de todos os abrigos que existem) e chegou a um numero que passou a ser repetido: 80 mil crianças e adolescentes abrigados. Em 2009 foi criado o Cadastro Nacional de Adoção, para centralizar os adotantes e as crianças e adolescentes “disponíveis para adoção”. A idéia é boa e previa uma centralização e agilização do processo. No entanto, passou a apresentar dados enviesados, pois os 80 mil abrigados desapareceram e agora fala-se que há “apenas”  5 mil crianças disponíveis” e mais de 20 mil adotantes. Alguma coisa está errada nessa conta? De repente, não se fala mais dos 80 mil abrigados que  ficaram de lado, mais uma vez no limbo do esquecimento, uma espécie de "caixa-dois" do abrigamento. Será que se não falarmos deles o problema deixará de existir? Somente aquelas crianças cujos pais foram destituídos do Poder Familiar é que entram no cadastro e sabe-se por depoimentos sistemáticos que o CNA não é alimentado pela maioria absoluta dos Juizados do país. Entre outro problemas,  já cansei de ouvir que a maioria dos operadores da adoção não faz a destituição do Poder Familiar de milhares de crianças porque não "tem perfil para serem adotadas”. A maioria dos abrigados não tem sequer processo em centenas  de abrigos. Cada abrigo que tenho visitado, ou ouvido relatos, tem cerca de 5 a 10% de crianças "disponíveis para adoção", o mesmo percentual de duas décadas atrás quando fizemos a pesquisa que gerou o livro "Filhos da Solidão".
Mas, pelo menos no início da década de 90 se falava que era preciso resolver o problema de todas as crianças e adolescentes abrigados, e atualmente o discurso mais parece um disco riscado, pois somente se fala que existem “apenas 5 mil abrigados” e “os adotantes é que são muito exigentes, só querem crianças brancas e saudáveis etc. e tal”. Tenho compilados inúmeros relatos de pretendentes à adoção que querem, sim, adotar crianças especiais, crianças maiores, crianças com HIV e mesmo assim amargam uma espera irritante e encontram dificuldades incompreensíveis em alguns Juizados do país.  Ao contrário de países desenvolvidos que praticamente extinguiram as instituições de abrigamento, em nosso país elas ainda persistem incólumes, e o lento caminhar  é acrescido de uma série de dogmas e psicologismos que vão contra as pesquisas recentes sobre o tema: "o adotante não pode visitar abrigos", "o pretendente não pode adotar se perdeu um filho", "não pode adotar crianças menores de 12 anos se for homossexual", "não pode trabalhar em um abrigo e querer adotar", "não pode adotar criança especial porque deve querer alguma coisa com isso", "não pode isso, não pode aquilo...". E as crianças continuam esperando... e sonhando em viver em família e em comunidade. Quando ficam bem grandes, depois de o sistema insistir  por muito tempo em procurar qualquer parente nesse imenso Brasil, mesmo que o parente nem conheça a criança e muito menos queira ficar com ela, algumas crianças entram para o cadastro....  
Os desafios que devemos enfrentar atualmente é não deixar as crianças envelhecer nas instituições e conscientizar os brasileiros sobre as adoções necessárias: crianças mais velhas, negras e pardas e com necessidades especiais. O trabalho principal é pedagógico, de conscientização da população e técnico, de preparação de profissionais que acolham e preparem pessoas dispostas a acolher uma criança ou um adolescente. É um trabalho gigantesco e a longo prazo, e por isso, o sistema deve apoiar e valorizar pretendentes à adoção que justamente deixam seus preconceitos de lado e mostram desejo e condições para realizar as adoções necessárias.
*Lidia Weber é professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da UFPR e do Mestrado e Doutorado em Educação pela UFPR; Psicóloga pela UFPR, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP e pós-doutora em Desenvolvimento Familiar pela UnB.

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