Uma reportagem exibida neste domingo, 24, no programa Fantástico, da TV Globo, questionou casos executados na Comarca de Gaspar ligados à destituição familiar – quando os filhos são afastados da família por decisão judicial. Os casos citados pela reportagem na cidade foram os de Elaine Vitencourt e André Sarnowski, que perderam a guarda de três das quatro filhas após uma depressão pós-parto de Elaine, e de M. E., 1 ano e 11 meses, afilhada de Manoel e Zilda Giacomoni, que foi encaminhada para um abrigo mesmo após o casal pedir a guarda da criança.
A reportagem dos jornalistas José Raimundo e Eduardo Faustini entrevistou a juíza Ana Paula Amaro da Silveira, responsável pela vara da Infância e Juventude na Comarca de Gaspar até o final do ano passado. A juíza confirmou que buscava acelerar processos de destituições para aumentar as chances de adoção das crianças, já que as famílias na fila de espera costumam preferir crianças de até 2 anos. No entanto, ela garantiu que todas as destituições são propostas pelo Ministério Público, com espaço para versões de todos os envolvidos.
Impasse
A promotora Ellen Sanchez, coordenadora do Centro de Apoio à Infância e Juventude do Ministério Público de Santa Catarina, por sua vez, alegou na reportagem que em alguns casos procedimentos previstos em lei, como ouvir testemunhas ou familiares interessados na guarda, não foram observados e que o MP estaria recorrendo para tentar anular essas decisões. As afirmações acabaram gerando um impasse entre juíza e promotora.
A reportagem citou ainda números de adoções do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que apontam 37 adoções em Gaspar nos últimos seis anos, contra 34 em Blumenau, cidade com número de habitantes cinco vezes maior. Também foram ouvidos especialistas como o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Nelson Calandra, e o representante das Nações Unidas, Wanderlino Nogueira Neto.
Família conseguiu guarda provisória
A 11 dias do segundo aniversário da pequena M. E., de 1 ano e 11 meses, Manoel e Zilda Giacomoni já planejam detalhes da festa. Depois de um ano e sete meses lutando para ter a guarda da afilhada, filha de um sobrinho de Manoel, o casal finalmente tem motivos para comemorar.
Em agosto de 2011, a afilhada, então com quatro meses, foi destituída da família e levada para um abrigo da cidade. Como a mãe sofria de problemas psicológicos e o pai não tinha estrutura familiar para criar a filha, o casal, proprietário da creche Recanto Feliz, no bairro São Pedro, acolheu a menina até que uma decisão judicial determinou a separação. “Eu disse aos conselheiros tutelares: vocês vão levá-la hoje, mas eu vou buscá-la”, relembra Zilda em entrevista ao Cruzeiro do Vale.
Cinco dias depois um advogado contratado pelo casal dava entrada a um pedido de guarda, que acabou sendo negado na Comarca de Gaspar, mesmo com a proximidade familiar do casal. No último dia 15, em decisão da Justiça de Florianópolis, o casal finalmente conseguiu a guarda provisória da menor, que será acompanhada a cada 15 dias pelo Conselho Tutelar. “Somos apaixonados por ela”, afirma Zilda.
Quem vê a pequena M. E., loira, sorrindo e brincando na creche dos padrinhos, até esquece das idas e vindas dela logo nos primeiros meses de vida. Agora, em fase de curtir a nova caçula da casa, Zilda defende que, sempre que possível, a criança permaneça com a família. “Espero que haja mais cautela nos próximos casos”, opina.
Elaine busca retomada das filhas
Após um processo de depressão, Elaine Vitencourt, 30 anos, moradora de Ilhota, retomou as forças para buscar de volta a guarda de três das quatro filhas, de 8, 7 e 3 anos. Elas foram levadas para um abrigo de menores em julho de 2011, após denúncias de que ela e o marido André Sarnowski, 32 anos, não teriam condições de seguir criando as filhas.
Durante quase um ano, período em que buscou se recuperar do quadro depressivo, ela conseguia visitar as filhas no abrigo. Depois disso, as visitas foram proibidas, sob a alegação de que o marido não estaria trabalhando e estaria abusando do álcool. “A partir daí decidimos ir a fundo para tentar retomar a guarda”, explica.
Elaine conta que chegou a ouvir que a filha mais velha seria levada a um abrigo de Itajaí, em que as crianças seriam preparadas para a adoção. Com a divulgação do caso em âmbito nacional, o casal espera que o interesse na retomada da guarda das três crianças seja analisado com mais rapidez. Enquanto aguarda por possíveis novidades, Elaine tenta se manter forte e voltar as atenções à caçula, de apenas cinco meses.
André alega que o casal se prepara para acolher novamente as filhas e se diz mais confiante com a possível revisão do caso. “Estou com saudade das minhas filhas e quero vê-las novamente”, conclui.
Quando a intervenção dá certo
Se em alguns casos a decisão judicial favoreceu a destituição, em outros as famílias tiveram prioridade. Em 2005, a assistência social determinou que seis netos de Ilma Pereira e Germano Odele, ambos hoje com 73 anos, fossem para um abrigo em Gaspar. No entanto, os avós intercederam e quiseram assumir a responsabilidade por dois deles: Oscar Junior, hoje com 11 anos, e Ismael Lucas, 16, que sofrem deficiências.
A intervenção deu certo e os dois permanecem até hoje sob cuidados dos avós, no bairro Margem Esquerda. Os outros filhos, aos poucos, também voltaram ao convívio da família. “Hoje não ficamos mais sem eles”, diz o casal.
Já John Stiehler, 21 anos, foi acolhido por três anos e meio num abrigo e destaca que o espaço também contribui com a formação. “Acho que as famílias devem poder visitar os filhos, mas a experiência no abrigo também pode ser boa. Para mim, várias portas se abriram”, destaca.
Juíza emite nota de esclarecimento
Na tarde desta segunda-feira, 25, a reportagem do Cruzeiro do Vale entrou em contato com a juíza Ana Paula, que preferiu não se manifestar. Horas depois, ela emitiu uma nota de esclarecimento em que aborda alguns dos assuntos citados na reportagem. Confira a íntegra abaixo:
Tendo tomado ciência de matéria jornalística, veiculada neste domingo (24/03), no programa “Fantástico”, da Rede Globo, na qual se questiona a seriedade e legalidade da minha atuação como magistrada nos processos relacionados à destituição de poder familiar e adoções na Comarca de Gaspar, considero importante tecer alguns esclarecimentos.
Primeiramente, cumpre salientar que TODOS os processos de destituição do poder familiar são, por determinação legal, da competência do Ministério Público. O ECA determina que o Promotor tem 30 dias da data do recebimento do relatório da equipe técnica que sugere a destituição para ingressar com a ação de Perda do Poder Familiar e o magistrado tem 120 para julgá-lo.
Quero agradecer a todos os membros do Ministério Público que ao longo destes 21 anos de magistratura me apoiaram e trabalharam em conjunto comigo. Tenho certeza de que as colocações feitas na reportagem não refletem a posição de todos a quem tenho o apreço e orgulho de ter como amigos.
Ao ser questionada pelo jornalista quanto às investigações feitas, segundo ele, pelo Ministério Público, apenas reproduzi as palavras do jornalista, ao dizer "Se o MP disse, o MP mentiu”, sem pretender fazer qualquer generalização. Afirmo, de maneira categórica que, durante a minha passagem por Gaspar, não houve nenhuma ação que não tenha sido proposta pelo Ministério Público (MP), assim como nenhuma criança ou adolescente foi encaminhado para adoção sem que houvesse ciência e participação do MP em todos os casos, que sempre tem ou teve vista dos autos. Nem eu, nem a associação dos magistrados e a Corregedoria de Justiça tem conhecimento até o momento de qualquer reclamação ou investigação contra mim.
Ademais, importante ressaltar que o alcoolismo, assim como a dependência de outras drogas, sempre foi considerada doença, mas não justifica que os pais ajam de forma negligente para com seus filhos, como restou comprovado nos autos de um dos casos exibidos no referido programa de TV. Tanto assim que o artigo 19 do ECA estabelece que toda a criança tem o direito de viver em ambiente livre de pessoas usuárias de substâncias entorpecentes. Muitas mortes e violência familiar são diariamente causadas por adultos que fazem uso indiscriminado de bebida alcoólica, causando estragos tantos que ensejaram a promulgação da Lei SECA, da Lei Maria da Penha e encontram no ECA a proteção para os filhos violentados por pais dependentes.
Quanto à família extensa, é direito da criança estar com seus familiares, pais cumpridores de seus deveres legais, e seus parentes próximos com quem mantenham vínculo de afinidade e afetividade. O direito é da criança e não da família de ter preferência sobre a criança. A legislação também prevê um prazo máximo de dois anos para as crianças ficarem em instituição de acolhimento. Nos dois processos questionados, os casos foram analisados desde 2010.
O próprio Ministério Público pediu a retirada da guarda da criança ME dos tios, porque a guarda era irregular. Na mesma ocasião, a mãe da criança cuja guarda a tia reivindica, também foi abrigada sem que os pretendentes à adoção tenham buscado auxiliá-la, permanecendo abandonada após tomar uma overdose de remédios.
Não é verdade que a família extensa não foi ouvida. Os tios foram ouvidos durante o processo de destituição promovido pelo Ministério Público que, ao final, pediu pelo encaminhamento da criança para adoção, entendendo que não poderia ser entregue aos tios.
Os dois processos em que as famílias se sentem injustiçadas, as partes estavam representadas por advogado, apresentaram defesa, tiveram oportunidade de produzir prova e não recorreram da decisão da magistrada. Estas decisões foram proferidas após a ouvida de conselheiros tutelares, assistentes sociais, professores, psicólogos e garantido o direito à ampla defesa. É importante ressaltar que os tios poderiam ter ingressado como terceiros interessados na destituição, mas só o fizeram quando da apelação, ou seja, em recurso ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, após a sentença no juízo de primeiro grau.
Cabe salientar, ainda, que as audiências, até por exigência legal e porque o Ministério Público é o autor da ação, são realizadas com o promotor de justiça e é o promotor quem arrola as testemunhas. Além disso, o termo “apressar” foi utilizado indevidamente, pois o que se fez não foi apressar e sim dar prioridade aos casos.
É natural que as partes envolvidas sintam-se injustiçadas, situação com a qual, aliás, nós magistrados lidamos todos os dias, haja vista que num processo judicial haverá sempre uma parte que ganha e outra que perde. De todo modo, cumpre reafirmar que a função do magistrado e do Ministério Público é a de resguardar o direito das crianças, as quais não tem a quem recorrer, nem podem contratar um advogado ou acionar a imprensa para fazer valer seus direitos.
Por todo o exposto e também pela admiração e respeito que tenho pelo importante trabalho da Imprensa em favor da sociedade, registro o meu desapontamento com a postura parcial dos autores da reportagem, a quem foi oportunizado acesso aos autos; contato com o promotor que por nove anos atuou na primeira vara; ter acesso à Corregedoria de Justiça do Tribunal, órgão responsável pela fiscalização da atuação dos magistrados; e à Coordenadoria da Infância. Lamentavelmente, tudo isto não foi feito, como, aliás, preconizam as regras do bom jornalismo.
Também foram repassados aos repórteres os dados relacionados ao número de adoções feitas em todas as comarcas do Estado e, novamente, a reportagem procurou fazer um paralelo deturpado dos números de adoções entre Gaspar e Blumenau, porque procuraram em seis anos um único ano em que Gaspar fez mais adoções do que Blumenau, justamente, quando a estrutura dos abrigos passou a funcionar adequadamente e crianças, que estavam há anos aguardando uma família, puderam ser encaminhadas.
A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente prevêem que os processos relacionados à Infância e Juventude devem ter prioridade de andamento. Foi o que fizemos e, curiosamente, por essa mesma razão estamos sendo cobrados de maneira indevida e injusta publicamente.
Se houvesse vontade e, sobretudo ética, a reportagem do Fantástico poderia facilmente comprovar que o trabalho realizado por mim em Gaspar é conhecido e reconhecido nacionalmente e conta com total apoio de meus pares e da Associação de Magistrados Catarinenses (AMC), os quais são sabedores e testemunhas dos meus 21 anos dedicados à profissão. Durante todo este período não existe nos registros funcionais nenhuma reclamação, seja na Corregedoria de Justiça ou no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Meu engajamento na área da Infância e Juventude é de todos sabido, inclusive minha atuação na primeira Vara de Gaspar, na qual iniciei no ano de 2003. A Vara, atualmente com 8000 processos, tem competência em várias frentes, entre elas, com exclusividade nos feitos afetos à Infância e Juventude, aonde procurei aplicar o que a legislação estabelece: a prioridade absoluta da criança e do adolescente.
Para tanto e junto com o Ministério Público lancei a Campanha “Elo Social” para melhorar a estrutura física e técnica do único abrigo que existia na cidade: uma casa de madeira, com móveis de escritório antigos e sem nenhum técnico para atender as crianças retiradas de suas famílias por serem vítimas de maus tratos, negligência e abandono, conforme estipula a lei.
Deste trabalho, consegui o apoio do empresariado local, da imprensa e da comunidade e o que era uma casa miserável transformou-se na instituição eleita em 2007, pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), como o sétimo melhor abrigo do País. Após, foram criados mais dois espaços destinados a atender os adolescentes que não encontram respaldo nas suas famílias biológicas e não conseguem ser adotados, porque lamentavelmente a cultura da adoção no Brasil não acolhe adolescentes.
Este trabalho, que não despertou interesse nos jornalistas da Rede Globo, tem o apoio da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça e segue os ditames do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual cobra do magistrado que os processos ligados à crianças e adolescentes acolhidos sejam céleres, para impedir que vítimas dos abusos de seus pais, sejam duplamente condenadas, pelos atos arbitrários dos pais e pela inércia do Estado, mantendo crianças e adolescentes por tempo indefinido presas em instituições, sem prepará-las para aos 18 anos terem de assumir suas vidas sozinhas.
Por todo o exposto e em nome da verdade, mantendo a minha fé na importância do trabalho exercido pela Imprensa, solicito que tais esclarecimentos sejam levados ao conhecimento do público e que o mesmo espaço destinado a atacar a minha imagem e a minha honra também seja disponibilizado para desfazer essa grave injustiça.
Cordialmente,
Juíza Ana Paula Amaro da Silveira.
Associação de Magistrados manifesta apoio
No início da noite, a Associação de Magistrados Catarinenses, AMC, divulgou nota em apoio à juíza Ana Paula Amaro da Silveira. O texto afirma que a magistratura assistiu à reportagem com “grande surpresa e perplexidade” e classificou como “tendenciosa” a forma como o assunto foi tratado, por desconsiderar itens dos autos dos processos citados na matéria. “A AMC, em nome de toda a magistratura catarinense (...), reafirma a sua confiança na juíza Ana Paula, que ao longo dos seus 21 anos de judicatura só fez honrar o Poder Judiciário de Santa Catarina”, conclui.
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