29/08/2014
Madeleine Lacsko
É difícil a gente conseguir elaborar um pensamento sobre esse caso escabroso do assassinato do menino Bernardo. Mas crianças como ele são abusadas diariamente e a sociedade saberá repetir diariamente os abusos que uma criança sofre da própria família.
As pessoas que são criadas em famílias normais, com mais ou menos problemas, mas incapazes de abusos físicos ou psicológicos contra uma criança, têm uma visão romantizada e idealizada do papel de mães, pais e tutores. E é dessa ingenuidade que se constrói o instrumento de tortura perpétua da sociedade contra a criança abusada.
Antes de ser assassinado, o menino pediu ajuda. Toda criança vítima de abuso sabe que só se faz isso em último caso, quando se acha que há risco de morrer logo e esperança de intervenção. As crianças sabem que os adultos se protegem. Quando reclamam, sabem que isso será comunicado ao adulto para que ele tenha a oportunidade de inventar desculpas para as atrocidades que faz, passar de coitadinho e depois descontar de uma forma pior ainda.
Foi exatamente o que as autoridades fizeram no caso do menino Bernardo. Chamaram o pai, conversaram com ele e mandaram o menino para casa. Afinal, pai é pai, né? Toda criança assassinada em episódios de violência familiar tentou reclamar antes, podem conferir. Mas adulto não acredita nisso, principalmente se teve uma infância tranquila ou é bom com crianças.
Quantas pessoas você já viu dando conselhos de "jamais cortar os laços" entre o pai ou a mãe que abandonam ou a criança abandonada? Pensando friamente, existe coisa mais canalha e covarde do que largar uma criança à própria sorte? Quem é capaz disso é capaz de qualquer coisa. Mas as pessoas são capazes de submeter uma criança ao julgo de um monstro desses. Porque quando olham não vêem um monstro, reproduzem de maneira infantil a figura idealizada de mãe e pai que aprenderam na própria infância.
Se a criança não morre nas mãos do abusador, e se consegue superar os traumas que ele produz e reitera diariamente por anos, passará a ser abusada pela sociedade quando for adulta. O abusador desfruta livremente da impunidade quando não chega a matar a criança.
O que abandonou há de voltar, sempre com uma história muito triste, tentando justificar o abandono. O que abusava diariamente vai negar tudo, também sempre com uma história muito triste. E a criança abusada será cobrada porque, afinal, pai é pai; mãe é mãe. A pessoa passará a ouvir "ah, mas você tem que perdoar, é sua mãe", "ah, mas de qualquer maneira pai é pai e agora ele assumiu", "nossa, você sofreu isso mas ela te criou", "ah, mas pensa bem, por outro lado ele fez tanto por você".
Quando envelhece, o abusador continua utilizando o conceito de ingratidão. A maioria das pessoas vai efetivamente condenar a criança abusada que não quer laços com seus abusadores ou não quer passar a vida sendo abusada de diferentes formas.
Muita gente está chocada com a gravação revelada pela RBS mostrando o inferno que o menino Bernardo vivia em casa. Eu não consegui ouvir tudo, confesso. Se você conseguir, reflita profundamente: quantos meninos Bernardos você já tentou fabricar com conselhos ingênuos? Quantos meninos Bernardos adultos você condenou por "ingratidão" contra os pais?
A maldade existe e muitas vezes ela se esconde sobre o que deveria ser mais sagrado no mundo: maternidade, paternidade, sentimento de família. Os adultos têm o dever de proteger as crianças e às vezes, infelizmente, isso significa que precisamos nos despir das nossas fantasias infantis para olhar a realidade como ela é. Infelizmente, poucos adultos estão dispostos a isso.
Madeleine Lacsko é jornalista profissional e mãe experimental. Trabalhou na Rádio Trianon, Rádio Jovem Pan, Supremo Tribunal Federal, Unicef Angola, CCR e Change.org. Faz comunicação política e para relações internacionais. Mãe mesmo, só do Lourenço.
http://www.brasilpost.com.br/madeleine-lacsko/o-mundo-e-dos-adultos-as-crianca-sao-invisiveis_b_5725226.html?utm_hp_ref=comportamento
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