domingo, 24 de agosto de 2014

Parecenças

Atitude adotiva

Publicado em 24/08/2014, às 20h35 | Atualizado em 24/08/2014, às 20h38
Por Guilherme Lima Moura
 / Foto: internet Foto: internet


Na rede da varanda, balançávamo-nos Marília e eu, aproveitando o vento frio do inverno no Agreste pernambucano. Em meio às conversas de pai e filha, ela aproveitou para se queixar de que gostaria de se parecer mais com a mãe.

Referia-se aos traços étnicos que a caracterizam como uma linda menina negra. Por sua vez, a mãe, assim como eu, é parda, termo que se convencionou usar para definir a nós, outros, os misturados de todos os matizes que formam a especial diversidade racial brasileira.

Somos, afinal, alguns bons tons de negro, branco, índio. Então, uma vez coloquei sobre a mesa duas garrafas, uma com leite e outra com café. Fui fazendo misturas num copo. “Tá vendo, às vezes tem mais leite, outras vezes mais café. Mas, no fim, é tudo café com leite e é tudo gostoso.”

E vamos assim conduzindo com naturalidade o que deve ser natural. E enfrentando abertamente o que tem que se enfrentado.

Já com quatro anos de idade, Marília corrigia os racistas disfarçados que teimavam em lhe chamar de morena, numa das abordagens mais perversas do sub reptício racismo brasileiro: o uso do eufemismo que pretende transformar em elogio a descrição inexata, tarjada de uma brancura asquerosa. “Morena não. Eu sou negra!”, dizia ela, enchendo de perplexidade o autor da pérola.

Mais recentemente, deparou-se com tentativa de agressão por parte de um coleguinha, que lhe gritou um “Sua negra!”. A resposta veio com doçura e firmeza: “Sou negra sim, com muito orgulho”. E o que pretendia ofender quedou-se no vazio da tolice, perdeu-se na desaprovação dos demais colegas, encheu-se de vergonha... A mesma vergonha que deveria ter impedido os pais daquele menino de inflá-lo de preconceitos.

É assim que lhe ensinamos para que nunca lhe falte o orgulho de ser quem é. E assim educada, cresce uma menina com elevada autoestima, capaz de não se ofender com as tolices que às vezes escuta, ao mesmo tempo em que se impõeante os detratores.

Intuitivamente, minha filha cresce à luz da perfeita descrição de Boaventura de Sousa Santos: Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.

Somos todos vira-latas, meus caros amigos. A origem dos nossos corpos se perde na esteira do tempo, remontando às misturas dos processos evolutivos entre as espécies naturais (ou no pós jardim do éden, para os que assim o creem). Somos todos misturados. Somos todos café com leite - embora falte a alguns uma boa pitada de açúcar, há que se dizer.

E assim Marília cresce num perfeito equilíbrio entre amor próprio, compaixão e firmeza de caráter. Não é à toa que, por onde chega, cercam-lhe as crianças imantadas pela sua energia meiga e repleta de luz.

Mas Marília queria se parecer com a mãe. É um direito dela.

Embalados pela rede nordestina naquela noite de céu estrelado, respondi simplesmente que ela parecia mais com a mãe do que eu. “Não, pai. Você parece mais com mamãe do que eu”, insistiu, um tanto irritada dada a óbvia referência à cor da pele. “Filha, você é menina e quando crescer vai ser mulher como mamãe. Seu corpo é feito o dela. Então, você parece mais com ela do que eu”.

Ela parou e ficou me olhando... E percebeu intuitivamente que, quando o critério de comparação muda, o que é diferente passa a ser igual; e o igual se torna diferente. Por que o critério precisa ser sempre a cor da pele? Há tantos e tantos, a partir dos quais podemos ser agrupados!

E foi então que Marília me iluminou com o seu sorriso incomparável porque se deu conta de que, sim, ela realmente se parece com sua mãe.

Como pais e filhos de verdade, celebramos nossas misturas e acolhemos os traços que tornam cada um de nós único.

Mas que nossas parecenças continuem sendo sempre as da conduta e do caráter. Eis a semelhança que vale a pena propor aos filhos. *As colunas assinadas não refletem, necessariamente, a opinião do NE10
Atitude adotiva Guilherme Lima Moura é pai adotivo, integrante do Gead (Grupo de Estudos e Apoio à Adoção do Recife) e professor da UFPE. glmoura@gmail.com
 
 

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