Lidia Weber: o que importa é a criança
Milhares de menores vivendo em abrigos à espera de um lar. Milhares
de candidatos em busca de um filho para chamar de seu. Quando vamos
fechar a conta da adoção no Brasil?
Em novembro de 2009, quando a Lei Nacional de Adoção entrou em vigor, a
esperança era de que mais e mais histórias de candidatos a pais de
crianças sem lar tivessem um final feliz. Três anos depois, o cenário
continua longe do ideal. Pouca gente está mais credenciada neste país a
dar um panorama sobre a adoção do que Lidia Weber. Apaixonada pelo
assunto, ela pesquisa o tema desde 1989, quando visitou um abrigo pela
primeira vez e escreveu Filhos da Solidão, um de seus 11 livros
publicados. Professora associada dos departamentos de Psicologia e de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná,
coordenadora do Núcleo de Análise do Comportamento (NAC), ela tem ainda
no currículo mais de 150 publicações, mais de 300 trabalhos apresentados
e dezenas de convites como palestrante em congressos nacionais e
internacionais.
Psicóloga, pesquisadora e militante, Lidia é
casada, mãe de dois filhos biológicos e dona de uma história pessoal
reveladora: ela mesma viveu um processo parecido com o de adoção. Na
infância, pouco antes de entrar na escola, saiu de Itararé, interior de
São Paulo, onde morava com os pais, e foi viver em Curitiba, onde acabou
sendo criada pelos tios, a quem chama de pai e mãe até hoje. Como você
verá a seguir, o olhar dela para esse assunto tão delicado tem razão,
mas também muita emoção.
Adotar é acreditar que a
história é mais forte que a hereditariedade, que o amor é mais forte que
o destino. Qual é a história dessa frase, cunhada por você? Fiz
o primeiro grande estudo em todo o Brasil sobre pais adotivos, filhos
adotivos, filhos biológicos e famílias adotivas para minha tese de
doutorado, que publiquei com o título de Filhos da Solidão. Foi quando
aprendi que há coisas mais importantes que nossa vã psicologia. Existem
altruísmo, generosidade, capacidade de abertura muito maiores do que
supomos. Me apaixonei pelo tema da adoção porque ele subverte a
biologia, a psicologia; é uma bonita transgressão dessa questão de
sangue.
O que você diria a uma mulher que está em dúvida? Eu
diria a ela para se informar sobre o processo. Frequentar grupos de
apoio na sua comunidade, ouvir depoimentos, pesquisar. Se ela mergulhar
no processo, vai adotar. Quantas vezes participei de pesquisas que
terminavam com a frase: "Se eu soubesse que era tão bom, teria tomado a
decisão antes"?
Em sua pesquisa de doutorado, você
concluiu que escolher a criança ou características dela não determinou
melhor relacionamento afetivo. Quais são as fantasias mais comuns sobre
adoção?
Uma relação sem arestas. Claro que os problemas
existem - senão, não seria natural. Qualquer família enfrenta
dificuldades. Mas outra pesquisa feita por mim mostrou que, em 70% dos
casos de insatisfação de pais e filhos, a revelação da condição de
adotado tinha sido tardia ou inadequada. Esse, sim, é um fator de risco
para as expectativas de um bom relacionamento familiar. Depois dos 6
anos, é tarde demais para saber.
O filme Um Sonho
Impossível, baseado na história de um jogador de futebol americano,
negro e adotado aos 16 anos, seria um sonho impossível no Brasil? O
brasileiro tem preconceito de cor? O brasileiro tem preconceito de cor por fazer o seguinte raciocínio: quero um bebê parecido comigo.
Mas se somos um país de pardos... Mas
a maioria que adota é de brancos. O IBGE mostrou o retrato de um país
de pardos porque aumentou o reconhecimento - até o último Censo, muitos
não se reconheciam como tal. Somos metade pardos e negros. A boa notícia
é que lentamente a realidade está mudando, e aumenta o número de
adoções inter-raciais.
A que você atribui a mudança? Principalmente
aos grupos de apoio, que mostram a realidade com mais clareza. Artistas
como Madonna, Gal Costa, Angelina Jolie e Sandra Bullock acabam gerando
modelos importantes para a comunidade.
Por falar em
mudanças, o que de fato mudou com a Lei Nacional de Adoção, de 2009, que
se propunha a corrigir falhas graves, como o despreparo dos futuros
pais e a prioridade para que irmãos fossem adotados por uma mesma
família? A lei veio em boa hora, mas não resolveu todos os
problemas como se esperava. Entre a lei e a realidade, há muitas pedras.
Por exemplo, a preparação de quem adota. Preparar quer dizer formar,
esclarecer, propiciar desenvolvimento, maturação e mudança. Mas
palestras não mudam comportamento. É necessário também oferecer
vivências, sensibilizações, e por um período não menor que seis meses.
Tampouco existe, ainda, um órgão de coordenação do Judiciário. Para
saber sobre as estatísticas de abandono e adoção, é preciso buscar em
mais de 2 mil juizados do país. No caso dos irmãos, é importante saber
se foram criados juntos e desenvolveram um vínculo. Imagine a
dificuldade de encontrar interessados em adotar cinco irmãos!
No que consiste essa preparação?
Você
vai ter que saber lidar com o preconceito, sim, porque ele ainda
existe. Se adota uma criança mais velha ou uma criança de cor, precisa
saber administrar essa identidade. O adotante também deve ser preparado
para revelar a adoção. Se alguém chega para uma mãe adotiva e diz: "Ah,
essa é a criança que você pegou para criar?", ela não precisa ficar
brava e virar a cara. Deve dizer: "Não, essa criança se chama Maria e é
minha filha, tem 5 anos".
E quanto ao Cadastro Nacional de Adoção? Há
um rigor excessivo para que as adoções sejam feitas por meio do
cadastro. Mas sua óbvia falta de atualização envia sinais trocados, como
a divulgação de que existem cerca de 4 mil crianças e mais de 26 mil
adotantes. Os números da Associação dos Magistrados do Brasil mostram
que em torno de 80 mil crianças e adolescentes estão em abrigos, e
apenas 10% desse total podem ser adotados. Na verdade, ninguém sabe
exatamente quantos abrigados são nem quantos abrigos existem! Outra lei
que não está funcionando como se esperava é a da família extensa. O
empenho exagerado em tentar a reintegração da criança a avós, tios,
primos e outros parentes tem resultado em crianças que envelhecem nos
abrigos e depois perdem suas melhores chances de adoção - é sabido que a
maioria prefere bebês.
Qual a solução para nossos problemas de adoção? As
pessoas ainda desejam uma criança idealizada, que não está disponível.
Por outro lado, a solução inclui resolver problemas como a miséria.
Temos de acabar com o abandono de crianças no lixo, na maternidade, nas
instituições. Uma mãe pobre que não quer criar seu filho não tem
consciência de que pode levar essa criança ao juizado e doar. A maioria
das crianças em abrigo é abandonada. Mas essas mães que abandonam, de
fato, nunca foram filhas. Eram vítimas de práticas abusivas ou
negligentes; praticamente não tiveram pai nem mãe. Se não foram filhas,
não saberão ser mães. O que define o ser humano é a capacidade de amar e
ser amado. Se o vínculo afetivo não existe... Há relatos
impressionantes: "Abandonei minha filha mesmo, porque eu queria ir nos
`bailão¿ e ela me atrapalhava". Outra disse: "Uma vez esqueci minha
filha na mesa de sinuca do bar; tiveram que bater lá em casa". São
outros valores, outros modelos. Não adianta atirar pedra nessas
mulheres. Temos um estado, e o poder público tem que cuidar da família
como um todo.
Quais histórias de adoção ou de abandono mais a impressionaram em todos esse anos? São
tantas... uma menina linda, um anjo de cabelos loiros, abusada pelo
padrasto com mãe conivente, chegou ao abrigo com 1 ano e meio, mas só
pôde ser adotada com 4. Como é que demoraram três anos e meio para
colocar uma criança que qualquer um ia querer? Aquela promotora carioca
que foi presa por manter a filha adotiva em cárcere privado, entre
outros maus-tratos. Como puderam entregar uma criança a ela? Mas também
tem um casal em Joinville que adotou mais de 50 crianças. Ele é um
ex-pastor; então, ali, é um projeto de vida. Claro que não é para
qualquer um. Aqui em Curitiba tem um caso bonito também. Um bombeiro, já
com três filhos biológicos, calhou de salvar um bebê jogado no rio
dentro de um saco plástico. Aí se apaixonou, achou que era uma mensagem
de Deus, e conseguiu adotar. Depois disso, já adotou mais 15.
O que realmente importa em um processo de adoção? Você
tocou em um ponto importantíssimo, um marco divisório: se chama adoção
moderna, em que o maior interesse é o da criança. O que a sociedade como
um todo precisa fazer é encontrar uma família para essa criança, e não
uma criança para essa família.
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/atitude/lidia-weber-adocao-criancas-brasil-670065.shtml?func=2
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