sábado, 24 de maio de 2014

O que temos a comemorar?




Silvana do Monte Moreira
Advogada
Presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM
Diretora Jurídica da ANGAAD

Próximo domingo, 25 de maio, o Brasil comemora o “Dia Nacional da Adoção”, instituído nacionalmente, através da Lei 10.447, de 09/05/2002. O dia nacional da adoção tem por finalidade a reflexão, a agilização, a comemoração e a realização de campanhas de conscientização, sensibilização e publicização do tema na sociedade, objetivando celebrar a adoção como importante política para garantia da prevalência do direito das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária.
A Semana da Adoção é lembrada com grande destaque em todo Brasil, através de diversos eventos e homenagens, organizados pelos grupos de apoio à adoção espalhados pelo país.
O instituto da adoção, mas fortemente a partir de 2012, não tem muitas vitórias a comemorar, vez que vem sendo marginalizado pelo judiciário e pelo legislativo. Pelo judiciário em decisões que colocam a criança em nível de objeto de propriedade dos genitores com os quais mantém vínculos de sangue despidos de afeto, pelo legislativo ao propor leis e projetos de leis que são inócuos ou contrários ao melhor interesse da criança. E, pasmem, em 2014 nossos legisladores estão férteis em ideias retrogradas de alterações ao ECA.
Dentre esses retrocessos citamos o Projeto de Lei do Senado (PLS) 379/2012, de autoria do senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para incluir a tentativa exaustiva de reinserção familiar da criança ou do adolescente antes da decisão definitiva de adoção, propondo o acréscimo da expressão “e as tentativas de reinserção” ao § 1º do art. 39 do ECA, o qual estipula que a decisão de adoção, dado o seu caráter excepcional, só deve ser tomada depois de “esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa”.
Obviamente que desconhece o autor do referido projeto de lei o que determina o artigo 19 do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente que determina:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
        § 1o  Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei.
        § 2o  A permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois) anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária.
        § 3o  A manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra providência, caso em que será esta incluída em programas de orientação e auxílio, nos termos do parágrafo único do art. 23, dos incisos I e IV do caput do art. 101 e dos incisos I a IV do caput do art. 129 desta Lei.
        § 4o  Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial.  
Ou seja, o próprio ECA já determina que a manutenção ou reintegração da criança/adolescente à sua família de origem tem total precedência à colocação em família substituta e determina a reavaliação semestral da criança/adolescente em acolhimento institucional, de forma que não se consegue verificar qualquer logicidade no PL em comento.
Novas leis que pecam pela obsolescência são a nº 12.962 de 8/04/2014 e a nº 12.955/2014, pois, ambas tratam de matérias já disciplinadas pela Constituição Federal e por outras leis.
Existe, ainda, a possibilidade de um novo Projeto de Lei a ser proposto pela Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Tráfico de Pessoas que, mesmo sem verificar o cometimento qualquer crime na adoção dos 5 irmãos de Monte Santo, pretende endurecer ainda mais os processos de adoção.
Não se trata de ser contra a criminalização do tráfico interno de crianças ou da intermediação de adoções irregulares, somos absolutamente favoráveis à tipificação de tais condutas como criminosas, mas somos contrários a que se dê tratamento de crime à adoção intuitu personae, ou mesmo que se engesse a adoção à ordem do cadastro nacional de adoção.
Adoção não é um instituto estanque e tem que ser analisado dentro da interdisciplinaridade que perpassa por todo o procedimento.
Existem e existirão, sempre, inúmeras situações onde a letra fria da lei não será bastante para que se resolva determinada equação, será necessário utilizar a lei – sempre balizadora – a jurisprudência, a doutrina e os costumes.
Não podemos nos fazer de cegos aos costumes de algumas localidades desse enorme país continente, tão dispare em matéria de compreensão de um mesmo fato. Nossa diversidade e nossa cultura nos fazem únicos pela multifacetariedade que nos contempla.
Nos cantões do Brasil as pessoas não abandonam os filhos, não entregam filhos em adoção, elas dão os filhos para criar. Dão para os padrinhos, amigos, vizinhos, patrões, para o prefeito, o gerente do banco, o dono da farmácia e assim vão se formando os filhos de criação. Não se pode conceber que essas crianças, que ocupam o lugar de filho, simplesmente sejam desconsiderados como filhos e que essas famílias sejam desfeitas. Essa configuração familiar tem o direito e o dever de ter o reconhecimento jurídico e para isso já avançou a jurisprudência, reconhecendo direitos e deveres de tais formações familiares cuja base é a parentalidade sócioafetiva.
A adoção consentida ou intuitu personae é algo comum entre os brasileiros e deveria ser regulamentada para que não permita que seu princípio de consentimento pelos laços de afeto e de afinidade entre as partes, termine violado por armações ou “jeitinhos” de burlar a lei.
Não podemos fazer ouvidos moucos aqueles que ficam anos com as crianças sem definição jurídica para a “formação de laços”, pois, a única prejudicada é, mais uma vez, a criança.
Porque não se regulamentar a adoção intuitu personae? Porque tentar bani-la colocando-a na clandestinidade? Porque os legisladores não acompanham os movimentos da sociedade?
Estamos diante de audiências públicas que analisarão o Estatuto das Famílias (PL 6583/13) que traz em seu artigo 2º “Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
Pergunto: e nós, o que somos? O que são uma mãe e uma filha? Um pai e seu filho? Dois pais e seus filhos? Duas mães e seus filhos? Um tio e uma sobrinha? Dois pais, uma mãe e seus filhos? Um homem, seus filhos, uma mulher e seus filhos e os filhos comuns? Uma pessoa sozinha? As famílias por adoção? Os conviventes? Os companheiros?
Porque a nossa legislação tem que ser retrograda para que a justiça a interprete de conformidade com os avanços da sociedade e para que os doutrinadores a destrocem. Temos, todos nós, que ter formação para exercermos uma profissão, ninguém dará o cérebro para ser aberto por um engenheiro e sim por um neurocirurgião, então porque permitimos que nossas leis sejam redigidas por quem não sabe e não tem formação para redigi-las?
O que temos a comemorar no dia 25 de maio de 2014? Temos que comemorar a formação de nossa consciência política para sabermos que, com nosso voto, não estamos apenas decidindo o futuro do nosso país, mas o nosso futuro. Precisamos saber em quem votamos, se aquele ou aquela tem capacidade para legislar.
Político tem que ter currículo e não apenas promessas de campanha que sequer são cumpridas, que o digam o trem Rio-São Paulo, o metrô de superfície, a despoluição da Bahia da Guanabara, da Lagoa Rodrigo de Freitas, dentre outras promessas e falácias.
Se queremos um país justo, com leis adequadas, precisamos fazer por onde e mostrar a nossa força e o nosso valor e, quem sabe, em 2015 tenhamos realmente o que comemorar.

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