29/06/2014
Kamila Almeida
A proposta, estimulada pelo poder público para amenizar o sofrimento, ainda é envolta em incertezas, mas ganha força desde 2009
Uma nova forma de paternidade, com prazo de validade, permite que crianças retiradas de suas famílias por decisão judicial recebam mais do que o amparo impessoal de um abrigo público. Mesmo sabendo que a convivência será temporária, casais se propõem a olhar nos olhos e perguntar como foi o dia e a disseminar valores familiares. Decidem criar como filho alguém com data para ir embora porque a infância maltratada tem pressa.
A proposta de priorizar o encaminhamento de vulneráveis para casas de acolhedores em vez de instituições ganha força desde 2009, com a aprovação da Lei Nacional da Adoção. O programa Família Acolhedora, inspirado em experiências europeias e americanas, onde milhares são abrigados em núcleos familiares, tem 1.364 lares cadastrados no Brasil.
Com isso, 1.390 crianças e adolescentes convivem temporariamente com uma família, diante de 44 mil que crescem em instituições. O governo federal e juízes da vara da infância de todo o país têm incentivado os municípios a implementar o programa para inverter as proporções. Não se trata de acabar com os orfanatos, mas de propiciar a melhor solução para cada caso.
A fórmula, recomendada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), parece simples, embora as entrelinhas sejam complexas. A criança desfruta de rotina saudável, em condições estabelecidas por cada programa a cargo de autoridades locais, e tem três destinos possíveis: volta ao lar de origem, caso os vínculos maternos e paternos sejam restabelecidos, adoção por uma terceira família ou reingresso em um abrigo. Ela só não pode ser adotada pelos acolhedores. A regra evita que se use a solidariedade como brecha para passar na frente dos 30,9 mil (4,7 mil no RS) à espera no Cadastro Nacional de Adoção.
No Estado, 98 famílias compraram a causa e 58 crianças integram o programa — 11 delas em Santo Ângelo, modelo desta experiência. O projeto nas Missões é encabeçado pelo juiz da Vara da Infância e Juventude Luís Carlos Rosa, dono de um discurso otimista:
– Não posso acreditar que, em uma cidade de 70 mil habitantes, não existam famílias com características para acolher quem precisa de ajuda, ainda mais uma criança.
O município foi escolhido por ZH para um mergulho nessas relações intensas, porém passageiras. São relatos de uma atitude que desperta mais dúvidas do que certezas sempre centradas no depois.
A VIRADA NA ROTINA DE UM CASAL
No dia 22 de maio de 2014, nasceram em Santo Ângelo uma mãe e um pai programados para desfrutar do carinho dos filhos provisórios por até dois anos. Aqui, serão chamados de José, 45 anos, e Bianca, 31. O casal, unido há mais de uma década, tem a identidade verdadeira omitida por zelo à vida de três crianças, também com nomes fictícios: Manoel, seis anos, Pedro, quatro anos, e Mariana, três. Eles são irmãos e, há um ano e meio, foram retirados da mãe de sangue pelo conselho tutelar e acomodados em uma instituição.
No final de fevereiro, a psicóloga de um dos abrigos da cidade telefonou para Bianca, convidando o casal para um encontro. Fazia um ano que os dois haviam se tornado voluntários da instituição e tinham contato quase semanal com os internos. Sem rodeios, a psicóloga tascou:
– Vocês conhecem o Família Acolhedora? Estamos com três irmãos que não podemos separar. Vocês não têm interesse em abrigá-los por um período?
Bianca e José já conheciam o formato provisório de proteção em casa de família para minimizar o sofrimento infantil. Tiveram uma noite para conversar e decidir.
– Mas vamos nos apegar. E como será na cabecinha deles quando acabar? Vão pensar: "Os tios não gostam mais de nós, estão nos abandonando"? – agoniou-se José.
– Se tu estivesses na situação deles, preferirias ficar dois anos em uma casa ou num abrigo? – indagou Bianca.
Após ponderarem a importância da oportunidade para a formação do caráter deles, aceitaram.
– Paramos de pensar em nós. Depois, se tiver que buscar ajuda psicológica, a gente se trata. Entramos conscientes de que um dia vai terminar, mas não queremos que esse dia chegue – argumenta José.
A intenção de engravidar no final de 2014 foi afastada. No mundo planejado, mudariam de casa, aproveitariam um pouco mais a paixão a dois e, então, ampliariam a família. Na vida real, três crianças impulsionaram uma mobília às pressas: minicamas, armários repletos de roupas, além da multiplicação de pratos, copos e talheres.
PARA ENTENDER AS ENTRELINHAS DA ROTINA DOS PAIS ESTREANTES, ZERO HORA ACOMPANHOU DOIS TURNOS DA VIDA DELES, EM 16 DE JUNHO. CONFIRA:
12:15
Os dois maiores, Manoel e Pedro, chegam da escola. A caçula havia despertado uma hora antes e já estava de banho tomado. Desfilava entre as visitas convidando a sentir o perfume dos cabelos.
– Ela é toda vaidosa. Adora um creme. Quando chegou aqui, estava cheia de piolho. Agora cuido do cabelinho. Fico horas emperiquitando ela – comenta Bianca.
Antônia, a funcionária do casal, termina de fritar os bifes. Na mesa, já estão servidos arroz, feijão, moranga, berinjela assada no forno com presunto e queijo e seis tipos de salada. Bianca retorna da cozinha anunciando:
– Vamos galerinha. Está na hora.
– Tio, senta ali na minha frente – pede Pedro a José.
Mariana está entretida com a moranga que saçarica na mão de Bianca em forma de aviãozinho. Manoel pergunta quem pode cortar o bife. Pedro pede mais broto de alfafa. Nem 20 minutos se passam, e o primeiro já desliza em direção à sala, onde a decoração neutra, com paredes brancas, foi substituída por tatames coloridos. Bianca lembra os maiores: é hora de escovar os dentes. No canto do banheiro supervisiona a higiene:
– No abrigo, faziam tudo sozinhos. Aqui a gente está em cima.
14:00
Raramente os mais velhos almoçam em casa, pois frequentam escola em tempo integral. A caçula, sim, pois só estuda à tarde. Limpo e agasalhado, o trio chega na aula às 14h (geralmente, chegaria às 13h, mas o casal esticou o papo com a reportagem). Só com estudo na rede particular, a família gasta quase R$ 2 mil, fora o investimento em plano de saúde e babá. No município, o programa virou lei e prevê o pagamento de um salário mínimo (R$ 724) para cada acolhido. O valor ainda não foi depositado, mas já tem um destino: poupança para o trio.
– Sabemos que a educação dos anos iniciais é a base. Temos feito tudo pensando somente no agora – diz José, que teve orientação de dar a eles o que proporcionaria aos filhos.
A mulher tirou licença por 30 dias referente ao benefício trabalhista pela guarda judicial. Empregou o tempo para se ajustar à nova vida. Quando o ponteiro do relógio marca 18h, ela apressa o companheiro:
– Vamos, a escola fecha às 18h30min. Nunca vamos buscá-los tão tarde assim.
18:25
Esbaforido, o casal aparece na porta da sala onde os três e outras cinco crianças aguardam os responsáveis. Mariana salta com as bochechas coradas na direção de Bianca e José. Eufórica, entra e sai do ambiente puxando a mochila de rodinhas e gritando a esmo.
– Meu Deus, mas que felicidade – vibra Bianca.
Os mais velhos chegam em seguida. Um pula no colo de Bianca, o outro nos braços de José. A mulher e as crianças aguardam na recepção até que o marido coloque uma a uma na respectiva cadeirinha do banco de trás do carro.
– O que você comeu na escola hoje? – interessa-se Bianca.
– Bolo de cenoura – diz Pedro, jogando-se para frente e para trás, fazendo cavalinho nas pernas dela.
Desde a chegada dos inquilinos-mirins, o casal não retornou mais ao abrigo para visitar as outras crianças. Mas planeja retomar o trabalho voluntário, levando junto os pequenos na missão para que convivam com os ex-colegas.
– Queremos que eles continuem com os mesmos amigos, pois não sabemos se na escola eles vão ser aceitos – preocupa-se José.
19:00
No pátio de casa, o trio apeia do carro e dá sinais de escassa energia. Pedro vai se justificando:
– Hoje eu não chorei na escola.
Na cozinha, Bianca abre cada mochila e lê os bilhetes diários que a professora escreve.
– Ela botou aqui que o Pedro chorou e fez manha na escola. E ele te disse que não chorou, né? – diz Bianca para José, que assente conformado e sai em busca do primeiro para a fila do banho.
José auxilia na higiene de Manoel, o mais velho, e Bianca separa pijamas, meias e pantufas.
– Ficam felizes porque aqui cada um tem as suas roupas, a sua escova de dentes, no abrigo, acho que usavam tudo de todo mundo – compara Bianca.
19:40
O jantar é servido, repetindo os quitutes do almoço. Manoel não está com fome e alega dor de barriga, enquanto os outros dois emendam garfadas.
– Tia, né que tu vai ser a nossa mãe? – dispara Pedro, sem desviar a atenção da tigela que raspa.
– O que você acha? Eu já estou sendo como a tua mãe, né? – responde Bianca, com fala mansa.
Embora a recomendação seja a de cumprir papel de pais para que as crianças experimentem a dinâmica familiar, orienta-se também que não sejam chamados desta forma para que não esqueçam se tratar de uma casa provisória.
A perenidade não os constrange no ensino de boas maneiras. Ao finalizar a janta, Pedro arrota, leva a mão à boca e olha para José, antevendo a repreensão.
– Que feio, o que o tio ensinou? Vai caminhar para baixar a barriga – orienta.
22:00
É hora de mamar e dormir. Esfregam os olhos em meio a cabanas feitas com almofadas do sofá.
Como os três colchões amanheciam molhados diariamente, a solução foram fraldas descartáveis para todos. Mesmo assim, José se levanta pelo menos duas vezes por noite para levá-los ao banheiro, ver se dormem ou se estão aquecidos.
Até a visita de ZH, 25 dias depois de iniciado o acolhimento, nenhum profissional da prefeitura havia feito contato com eles. Foram chamados na semana passada para as primeiras consultas com psicóloga, educadora e assistente social – prerrogativas para o sucesso do projeto.
Conviver com os relatos da vida pregressa também exige preparo. Dia desses, o casal assistia televisão na sala depois de todos recolhidos. Pé por pé, Manoel aninhou-se entre os dois. Contendo as lágrimas, desabafou:
– Quando eu morava na minha mãe, eu obedecia. Ela mandava eu dar banho no Pedro e na Mariana e eu dava, e, depois, eu lavava a louça para ela. E eu sonhei que eu era grande e obedecia vocês.
– Aqui tu não vais precisar lavar a louça. Agora, tu vais brincar. A tia é que dá banho nos manos – comoveu-se Bianca.
A orientação é ouvir com atenção sem dar sequência ao assunto.
– Não acho certo. Quem cala consente. Às vezes, eles dizem que a mãe deles tem um carro importado, que fazia isso e aquilo. Fica parecendo que aqui não está bom – lamenta Bianca.
Os dois evitam pensar no futuro porque sabem das regras. Cada município tem liberdade para moldá-las. Em Santo Ângelo, a guarda vale por até dois anos. Nesse período, o juiz tentará restabelecer os laços dos três com os pais de sangue. Se isso não ocorrer, entrarão no Cadastro Nacional de Adoção. José e Bianca não poderão concorrer – uma condição do programa.
– Eles falam com muito carinho da mãe. Se ela se organizasse, até acho que seria o melhor para eles. Mas também penso que se um casal se candidatar a ficar com três, na faixa etária deles, só pode ser bom. É o que me tranquiliza para depois – conforma-se Bianca.
A alegria dos irmãos é combustível de coragem. No dia do aniversário do mais velho, comemorado com poucos parentes por perto, ele anunciou:
– Tio, estou muito feliz porque tu me deu uma festa. Também estou muito feliz porque agora tenho pai, mãe, avós, tios e primos.
– É chocante ouvir isso de uma criança. Acho que ele queria este referencial. É importante para entenderem que há o núcleo familiar e que é a única coisa que importa na vida. A partir dali, tu consegues fazer coisas saudáveis – diz José.
Travessuras, aprontam aos montes. Especialistas dizem que, neste período inicial, são testes comuns para ver se não serão devolvidos. Um dia, sumiu a cueca do mais velho, – não sabem se ele jogou no vaso ou se atirou pela janela. Em outro, faltou água e, quando o encanador chegou, descobriu que eles haviam fechado o registro. Teve também a vez em que Manoel chegou em casa com um carrinho da escola.
– Conversei com ele que estava errado, fomos juntos até a escola devolver e fiz ele pedir desculpas – lembra José.
– Dá vontade de chorar quando acontecem essas coisas, mas aí tu vês aquelas carinhas te abraçando, te esmagando e compensa tudo – admite Bianca.
Em colo que cabem três, cabem cinco
De apito verde pendurado por um cordão rosa no pescoço, Leidir Carnelutti dos Santos Bortolon, 46 anos, comanda a criançada na casa que divide com o marido Gilmar Bortolon, 51 anos. O casal tem três filhos legítimos: Juliana, 13 anos, Gabriela, nove, e Fernando, seis. Leidir, que é professora, soube do programa Família Acolhedora por uma amiga. Como pretende esperar os filhos crescerem para se candidatar à adoção, achou que seria uma boa experiência.
Ela e o marido optaram pelos irmãos Ana, cinco anos, e João, três – nomes fictícios. Três dias antes do Natal de 2013, foram conhecê-los e buscá-los no abrigo. Meio ano de convivência e também de administração da ciumeira se passou.
– O Fernando não pode mais sentar no meu colo que este daqui fica irado – diz Leidir apontando para João e explicando que todos brigam e se divertem juntos.
Gabriela cedeu o quarto para os novos integrantes e dorme com a irmã mais velha. Na volta do colégio, Juliana cuida das outras duas meninas que não têm aula à tarde, enquanto os guris vão à escola. Ana e João estudam na rede pública, assim como Gabriela e Juliana. Fernando está em colégio privado.
Mesmo sem enxergar os parentes há dois anos, no Dia das Mães, Ana fez um desenho, escreveu o nome da mãe biológica e guardou em uma pastinha para entregar quando se reencontrassem. Na Casa Lar, onde os pequenos viveram por dois anos, eram bem cuidados, mas Leidir diz que era difícil receberem atenção individualizada.
– Aqui tem a hora do colinho, do carinho, da historinha, mas tem também o momento das obrigações, a hora de fazer a coisa certa e de estudar. Se não tiver uma sequência, a coisa não funciona – comenta Leidir, filha de militar e adepta da rigidez inerente à atividades.
A residência recebe visitas mensais da equipe que atua no programa, além de ligações periódicas para saber se precisam de ajuda. Os profissionais também passam de surpresa no colégio.
João tinha três anos, mas ainda não havia deixado as fraldas quando foi para a família provisória. Somaram-se 20 dias de incentivo, até que cedesse e fizesse as necessidades no vaso. Sonâmbula, Ana vaga pela casa e acorda o casal duas vezes por noite. Não são raros os gritos de "para pai, para pai". É diante dela, madura para a pouca idade, que Leidir mais se esforça para segurar a emoção.
– E o que tu lembras da tua mãe, "fía"? – questiona Leidir.
– Que ela se perdeu. E quando as mães saem e deixam os filhos, eles mandam uma gente especializada lá para buscar. Aí, o juiz levou a minha mãe e ela me perdeu – resume, do jeito dela.
– E o teu pai?
– Meu pai tinha uma arma e fumava maconha – responde.
– Às vezes eu penseo em desistir, mas me agarro a essas histórias que ela conta, a tudo o que já passaram – resume Leidir.
As meninas, que tiveram de abrir espaço para os novos membros da família, perguntam:
– Quando tu vais entregá-los?
A mãe responde:
– Tomara que demore, pois o pouco que puder dar será lucro. Tu podes desistir do programa a qualquer momento, mas vou lutar até o fim. Farei o melhor que eu puder agora para que tenham essa experiência única porque o passado eu sei que não foi bom e o futuro não tem como saber.
UM BEBÊ DURANTE QUATRO ESTAÇÕES
Por sete meses, a pediatra Adriana Pizzutti cuidou de um bebê como se tivesse saído do seu próprio ventre até que os pais adotivos definitivos chegassem. Ensinou-o a contemplar a natureza, acumulou olheiras por noites em claro e restringiu a vida social para dedicar o máximo de tempo a ele. Incentivou o menino a engatinhar na grama e o agarrou pela mão nos primeiros passinhos.
Adriana conheceu Gabriel, que teve o nome verdadeiro preservado, quando ele tinha oito dias de vida e foi chamada ao abrigo da cidade para auxiliar no tratamento do recém-nascido abandonado pela mãe usuária de drogas. Sete meses depois, o pimpolho ingressou no programa Família Acolhedora. Vendo o entrosamento dos dois, as técnicas do abrigo a consultaram sobre a possibilidade de criá-lo até que fosse para a adoção. Quando o termo de guarda foi expedido, em 10 de junho, Gabriel completava oito meses e foi morar com ela.
A médica de 48 anos tem dois filhos legítimos: Lucas, 19 anos, e Natália, 15 anos. Para receber a criança, desmontou o quarto da caçula que já morava em Santa Maria para cursar o Ensino Médio.
– Passamos quatro estações juntos. Ele acordava às 5h30min. Eu abria a janela e ia narrando tudo o que via lá fora, dizia se estava escuro, se tinha neblina. Depois, o colocava em pé no beiral da janela e ele ficava vendo tudo. Quando eram 7h, a babá vinha, e eu ia me arrumar para trabalhar, mas ia feliz, achava bacana aquilo – recorda.
No início de dezembro, perto das 18h, a psicóloga do Fórum de Santo Ângelo telefonou para Adriana informando que haviam encontrado um casal para o garoto. Depois de alimentá-lo, partiram para o encontro. No meio do caminho, o coração apertou por ela, por ele e pelo futuro dos dois. Com um ano e dois meses, Gabriel já caminhava. Percorreu a sala da comarca até um tapete vermelho lotado de brinquedos e sentou-se. O homem foi ao encontro dele. A mulher não se moveu.
A conversa entre Adriana, a mãe e a psicóloga iniciou-se. Passo a passo, o garoto foi em direção a elas e deitou a cabecinha no colo da futura mãe.
– Eu disse: "É a mãe dele, são eles". E aí não me perguntei mais nada, só fui ajudando eles a fazerem as adaptações – relata a pediatra.
Este era um roteiro que ela vinha desenhando mentalmente. Quando levou Gabriel para casa pela primeira vez, arriscou se fazer entender pelo pequeno.
– Meu nome é Adriana, vou cuidar de ti até os teus pais chegarem – disse ao bebê.
E com o sorriso a espremer os olhos marejados, conta:
– E assim eu era a Adriana, sabe, o que eu ia dizer? Eu não sou tia, não sou mãe, não sou dinda, eu sou a Adriana.
Às vésperas do Réveillon de 2013, Gabriel partiu. Para que ele pudesse levar consigo a história de antes da adoção, Adriana documentou tudo em fotos e vídeos e entregou aos pais, junto com o quartinho, as roupas e os brinquedos. Ela segue habilitada no programa como acolhedora, apesar de não planejar repetir o gesto de imediato. As duas famílias ainda se encontram em jantares ou no consultório médico. Apesar de amar Gabriel como filho, ciúmes não sente.
– Quem acolhe tem de fazer isto para ajudar, não pode pensar em si. Muitas pessoas temeram por mim, temeram que eu fosse sofrer. Meu pensamento era de que ele precisava desta experiência, como toda criança, mas era por ele que eu poderia fazer.
PORTO ALEGRE EXPERIMENTOU, DESISTIU E TENTARÁ OUTRA VEZ
Quatro irmãos foram salvos de um acúmulo de traumas em 2010, quando o programa Família Acolhedora se encerrou em Porto Alegre. O projeto comandado pelo Instituto Amigos de Lucas e executado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) durou quatro anos e faliu seis meses depois de a Lei Nacional da Adoção ter sido aprovada, em agosto de 2009. As regras da Capital haviam sido usadas para fundamentar o trecho do dispositivo legal que tratava do assunto.
Rosi Prigol, presidente do Amigos de Lucas, lembra que havia 20 menores de idade e oito domicílios cadastrados. O número pífio de voluntários, segundo Rosi, demonstrava a dificuldade em se conseguir alguém disposto a cuidar, colocar na escola, levar ao médico e depois romper com tudo isso.
– As pessoas recebiam as crianças e eram esquecidas – observa Rosi, que está em processo de adoção de dois dos quatro irmãos que ainda estavam no programa.
Os outros dois remanescentes ficaram com uma família provisória que também pediu para adotá-los. Rosi conta que a falta de repasse de verba da Fasc, então de R$ 3,3 mil mensais, para pagar os funcionários, como psicólogo, educador e pedagogo, fez o programa ruir. A Fasc diz que rompeu o convênio com a instituição, pois a estada se prolongava além do meio ano acordado. Segundo a Fundação, um novo plano de Família Acolhedora será posto em prática em 2015 e irá se somar aos 283 municípios brasileiros que aderiram.
– Quando há acompanhamento técnico e formação para os acolhedores, os benefícios são muitos. A criança estará numa situação mais favorável do que numa instituição – avalia Angelita Rebelo de Camargo, assistente social da coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado.
Acolher em famílias é mais humano, mas exige equipe técnica que possa dar suporte 24 horas às famílias, avalia o cientista social José Carlos de Moraes, professor da Escola de Conselhos do Rio Grande do Sul. Ele lembra que ainda há cidades gaúchas sem política de assistência social nem suporte para atuar nestes formato.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) recomenda que, quando houver a retirada de menor de idade do convívio dos pais, o magistrado prefira o encaminhamento ao acolhimento familiar em vez do institucional, como abrigos. Luís Carlos da Rosa, juiz da Vara competente de Santo Ângelo acredita que o sucesso local se deva à triagem detalhada das crianças encaminhadas ao programa.
FORMAS DE PROTEÇÃO
Onde ficam as crianças que não estão aptas para a adoção ou que aguardam na fila para isso
ABRIGO
Ambiente onde dezenas de crianças e adolescentes dividem o mesmo espaço e recebem atendimento de técnicos, como psicólogos, assistentes sociais e educadores.
CASA LAR
Moradia mantida pelo poder público, onde até 10 crianças ficam sob cuidados dos chamados "pais sociais", que são funcionários que moram no local e assumem todas as tarefas e responsabilidades que se espera de um pai e uma mãe.
APADRINHAMENTO AFETIVO
Voluntários apadrinham crianças e podem receber da Justiça um termo de responsabilidade especial para levar o afilhado para passear no final de semana, nas férias ou até para dormir em sua casa.
FAMÍLIAS ACOLHEDORAS
-Modalidade regulamentada na Lei de Adoção em 2009 e que deveria ser a preferencial, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente.
-O acolhimento de crianças em famílias sempre ocorreu informalmente, principalmente entre parentes e vizinhos, mas, na forma de um programa com estrutura de acompanhamento, é novo. Em 1972, Porto Alegre lançou uma iniciativa semelhante, que durou até 2002, mas acabou por falta de incentivo dos órgãos públicos. O mesmo ocorreu na segunda tentativa, de 2006 a 2010.
-No Estado, 98 famílias acolhem 58 crianças.
COMO FUNCIONA?
- A cidade precisa ter um programa com registro no Conselho Municipal da Criança e do Adolescente.
-A família se cadastra junto ao órgão responsável pelo programa no seu município.
-Os adeptos passam por um estudo psicossocial, envolvendo entrevistas individuais e coletivas e visitas domiciliares.
-A Justiça emite um termo de guarda provisória da criança.
-A família fica responsável pelas atividades cotidianas como levar à escola e a médicos.
-Cada programa institui o tempo máximo de permanência. Em Santo Ângelo, por exemplo, são dois anos.
-Depois, a criança pode voltar ao convívio com a família de origem, ao abrigo, pode ir para outros acolhedores ou ser adotada.
-Há programas que preveem uma ajuda de custo para os acolhedores. Em Santo Ângelo, esse valor é de um salário mínimo nacional.
EM DEBATE
COMO FICA A CRIANÇA DEPOIS?
A equipe técnica deve estar atenta para que o vínculo de filiação não se desenvolva entre a família e a criança, mas, sim, o de solidariedade. Ela precisa saber que ali será bem cuidada, mas que é um espaço provisório. Cláudia Fonseca, antropologa especialista em Família, estudou a circulação de crianças em casas de parentes e vizinhos e desfaz o mito de que mãe é uma só. Elas mais somam parentes do que sofrem com a perda dos que ficaram para trás.
E O SOFRIMENTO PARA A FAMÍLIA ?
O juiz Luís Carlos Rosa, de Santo Ângelo, enxerga esta preocupação como uma visão individualista. A proposta, segundo ele, deve ser vista como estender a mão a quem necessita de proteção naquele momento. É possível manter o contato no futuro, caso todos os envolvidos aceitem.
PAGAR PARA CUIDAR?
O ECA define que o acolhimento tenha incentivos financeiros. Existem críticos desta monetarização, pois acreditam que as famílias possam se interessar apenas pelo dinheiro. Já o cientista social José Carlos de Moraes crê que, se não houver um repasse para pessoas mais pobres, inclusive famílias vizinhas à criança ficam impossibilitadas de assumi-la.
E SE HOUVER ARREPENDIMENTO?
A desistência está prevista em caso de arrependimento dos cuidadores ou de dificuldade de adaptação da criança. Para evitar que isso ocorra, Angelita de Camargo, assistente social, lembra que é necessária uma avaliação criteriosa antes do processo. Algumas crianças e adolescentes são de difícil tratamento por apresentarem hiperatividade, agressividade ou traumas resultantes de abuso sexual.
QUE CRIANÇAS SÃO ESSAS?
Menores de idade que sofrem maus-tratos ou cujos pais ou parentes não têm condições de criá-las são afastadas do convívio familiar pelo poder público.
> Ao todo, são 45,7 mil no Brasil.
> Só no Rio Grande do Sul, há 5 mil crianças e adolescentes nestas condições.
> Apenas 12% dessas 45,7 mil crianças no Brasil são candidatas à adoção.
> Do percentual que vai para adoção, apenas 9,9% têm menos de seis anos.
> Entre os 30,9 mil pretendentes a adotar uma criança no país, apenas 4,3% aceitariam filhos de até seis anos.
Família em Santo Ângelo matriculou os irmãos em escola particular e se preocupa com o que pode fazer por eles hoje Foto: Tadeu Vilani / Agencia RBS
Há meio ano, casal de irmãos foi acolhido por Leidir, Gilmar e os filhos Juliana, Gabriela e Fernando. Foto: Tadeu Vilani
Pediatra Adriana cuidou de um bebê abandonado por uma usuária de drogas até a mãe adotiva definitiva chegar. Foto: Tadeu Vilani
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