A ADOÇÃO DE UM AMOR ETERNO
25/11/13
Por Jairo Marques
Quando se decide adotar uma criança no Brasil, já se imagina os pais
adotantes como exemplos entusiasmantes de amor ao próximo, de dedicação
sem igual ao outro.
Agora, o que pensar daquele que leva para casa
uma criança/adolescente com algum tipo de deficiência? Faltam adjetivos
que dê conta…
Fato é que ações que abrigam, dão casa, arroz com
feijão e futuro para pequenos abandonados são fundamentais para a
construção de um país menos deficiente socialmente.
E quando essa
atitude é tomada diante de um “malacabadinho”, seguramente está se
impedindo que um “serumano” fique abandonado a sua própria sorte e sua
condição física ou sensorial desigual. Pensar no fato, é angustiante.
Rogério Veloso é desses brasileiros que vão lá e fazem questão de
redesenhar realidades que estavam rabiscadas. Para minha sorte, o cabra
também é meu leitor, meu amigo e aliado incondicional.
Desde que
abri as portas deste botequim, o “negão”, como o chamo, é meu freguês,
meu consultor e divide com leitores pílulas de uma história de vida que
teve com Ana Paula.
Ana tinha um comprometimento cerebral
gravíssimo, foi adota pelo Rogério, criada, incentiva a melhor sua
condição incansavelmente e amada até os últimos dias. Poucos anos de
vida deixaram na família uma carga de aprendizado que é repassado e
exaltado até hoje.
De presente a meus leitores, nesses dias em que o
Natal “vem que vem” e que queremos deixar nossa alma mais levinha,
nossos poros mais abertos a possibilidade de mudança (sobretudo de
pensamento), um relato profundo de um “amor adotado”, de um amor amado,
de um amor de raízes imensuráveis.
Leia até o fim… vale muito a pena…
Aquele mês de julho de 1987 se encaminhava para o fim sem grandes
novidades. Considerando que estávamos sob o governo Sarney, a ausência
de novidades era motivo de alívio e satisfação, principalmente para quem
era assalariado como eu.
Só que acabou rolando uma novidade que
viria mudar minha vida, minha cabeça, meus valores e conceitos, meu
tudo. O telefone tocou, atendi e logo identifiquei a voz de Lúcia,
assistente social do antigo juizado de menores de Goiânia.
Desde a
adoção de Carol, pouco mais de três anos antes, acabamos por cultivar
uma amizade, digamos, formal, com o pessoal que trabalhava no juizado.
Lúcia me disse que tinha sido encaminhada ao berçário do juizado uma
criança.
Conversei com Edna, minha ex, e achamos por bem agendar uma
visita a uma unidade do juizado de menores denominada Centro de
Recepção e Triagem – na prática um depósito de crianças abandonadas,
rejeitadas ou tomadas dos pais por razões diversas -, para conhecer a
criança.
Interessante como as pessoas eram ‘classificadas’ na época: a criança não era uma menina, mas um menor do sexo feminino.
Encontramos Lúcia no local e horário combinados, e ela, meio que
querendo nos preparar psicologicamente ou coisa do gênero, nos disse que
o bebê era meio ‘esquisitinho’.
Deixamos de lado os entretantos e
partimos logo para os finalmentes. No meio daquele monte de berços,
onde uma infinidade de crianças exercitava os pulmões, encontramos
aquela que seria nossa segunda filhinha do coração, cujo nome já havia
sido dado pelas funcionárias: Ana Paula.
De fato era esquisitinha:
feia feito um preá, não reagia a qualquer som, toque ou outro estímulo.
Tinha 19 dias de vida, era minúscula e praticamente imóvel.
Olhamos
para Lúcia e dissemos que queríamos levar nosso bebê para casa naquele
instante, a burocracia poderia rolar com Ana Paula já instalada em sua
nova casa. Depois de um telefonema ao juiz, obtivemos uma autorização.
Quando adotamos Carol, em 1984, fomos vítimas de uma burocracia absurda
que nos impediu de levá-la para casa de imediato, nos impondo uma
espera eterna de uma semana.
Teve seu lado bom: tivemos tempo para
comprar roupas, berço, mamadeiras e tudo o mais que envolve o universo
de um bebê. Com Ana Paula a coisa foi mais punk, porque não tínhamos
nada e ainda exigimos o ‘habeas-corpus’ de imediato.
Foi uma
doideira: enquanto Edna tratava da higiene dela (banhos, talquinho,
essas coisas), eu peregrinava pelas boas casas do ramo para comprar
fraldas, mamadeiras, chupetas, chocalhos, berço, colchão, leite em pó,
mosquiteiro.
Ana Paula não tinha dificuldades para sugar a
mamadeira, então em pouco tempo ganhou corpo, perdeu aquela cor pálida e
foi ficando cada vez mais lindinha.
Mas o tempo foi correndo e ela
ainda demonstrava desinteresse pelo mundo exterior, não pegava objetos
nem acompanhava com os olhos corpos ou luzes em movimento, o que seria
de se esperar.
A pediatra sugeriu que aguardássemos três meses para
fazer uma investigação neurológica, porque somente após esse tempo é que
ocorre um amadurecimento neuronal que permitiria um diagnóstico
preciso.
O primeiro impacto causado pelo resultado do exame foi de
susto, dado o nome do ‘problema’: esquizencefalia importante unilateral,
com ampla predominância nos lobos occipital e parietal anteriores e
posteriores. Numa tradução livre, o diagnóstico dizia que minha filha
tinha pouquíssima ou nenhuma massa encefálica do lado direito. Veio sem.
Nunca pudemos saber de algo mais concreto sobre o passado dela, já que a
mãe biológica pulou a janela do hospital no dia seguinte ao parto e
vazou. O hospital alegou, estranhamente, que não havia ficha com os
dados da criança ao nascer, porque a mãe fujona teria levado consigo.
Alguma coisa aí não bate, né?
Sou fã de fisioterapeutas, terapeutas
ocupacionais, enfermeiras e fonos não é à toa. Priorizamos procedimentos
que dariam a Ana Paula as melhores condições terapêuticas com qualidade
de vida, começando pela estimulação precoce e gradativamente incluindo
outros procedimentos. A resposta foi lenta, mas alentadora.
Já com
um ano e meio de idade ela se locomovia rolando pelo chão, falava pouco e
demonstrava ter prejuízo na visão. Por acaso ouvi num programa de rádio
uma reportagem sobre um tratamento que estaria alcançando ótimos
resultados para problemas os mais diversos, incluindo os neurológicos.
Liguei para a rádio e fiquei sabendo que a clínica funcionava em São
Paulo e o tratamento consistia na exposição à oxigenação hiperbárica, na
época uma novidade. Todos os médicos com quem falei a respeito foram
evasivos, mas resolvi arriscar.
Voltamos para casa 33 dias depois.
Alguns meses após, ela já demonstrava um desenvolvimento que espantou os
médicos que a atendiam, principalmente o neurologista.
Adquiriu
controle de tronco e cabeça, aprendeu a sentar com a preciosa ajuda da
fisioterapeuta Dorotéia, e no que começou a falar foi um Deus nos acuda,
porque não parou mais. Tive que vender o carro para pagar o tratamento,
mas valeu muito a pena.
Conforme os anos se passavam ela foi se
‘abonitando’, mas as crises convulsivas que passou a ter com
regularidade a partir dos dois anos de idade sempre atrasavam um pouco o
desenvolvimento psicomotor dela.
Mas a vida seguia feliz, com certa
idade achamos que seria melhor uma cadeira de rodas do que um carrinho
de bebê e ela adorou. Após muitas idas e vindas, finalmente um oftalmo
descobriu um meio de melhorar a visão dela (tinha muita dificuldade em
focalizar), e receitou um par de óculos que era verdadeira goleada: 7 x
0. Sete graus de um lado, vidro do outro.
Já com cinco ou seis anos
era minha amigona grudenta, chegava do trabalho às 18h e ela já estava
me esperando para nossa rotina de passeios, piscina e brincadeiras no
playground do prédio.
Às vezes eu ia jogar um pouco de vôlei e Carol
ficava com ela na torcida. Lá pelas 21h subíamos, eu dava a ela os
remédios contra convulsão e meia hora depois, dopada, pedia para dormir
na cama.
Nunca ficou sem fisioterapia. Como a mãe dela não dirigia
na época, eu resolvi diminuir drasticamente a quantidade de matérias na
faculdade para ter tempo livre para levá-la para a clínica.
As
convulsões se tornaram algo rotineiro, e a reincidência nos ensinou a
tratar do problema com serenidade. Aprendemos que, se ela não acordasse
naturalmente pela manhã, demonstrando sono exageradamente pesado, era
caso de internação. Os demais casos tratávamos em casa, mesmo,
principalmente quando a crise era focal.
14 de maio de 1994. Após
deixar a mãe no aeroporto, para um passeio que seria porreta para a
Grécia, Turquia e costa da Espanha, Ana Paula deu sinais de que algo não
ia bem.
Logo percebi que não era uma crise qualquer e a levei ao
hospital, onde ficou internada. Como geralmente essas crises com
internação duravam no máximo 24 horas, optei por não avisar a mãe dela,
para não atrapalhar a viagem sem necessidade.
O problema é que a
coisa foi complicando e, sem maiores explicações do corpo clínico, minha
filha deixou de ser medicada, permanecendo dormindo no leito do
hospital.
Ana Paula passou a fazer movimentos involuntários típicos
de crise focal, chamei o médico plantonista mas ele demonstrava muita
pressa em voltar para seu posto, não se dando ao trabalho sequer de
entrar no apartamento. Também não esperou para ver os movimentos
involuntários, que ocorriam regularmente a cada 30 ou 40 segundos. O
médico insistia que ela não estava tendo uma crise, só estava tentando
acordar.
Lá pelas 3h, uma enfermeira entrou no apartamento, pegou no
pé da minha filha e disse: ela está tendo uma crise. Pedi a ela, então,
que chamasse o médico.
Demorou mas o facínora chegou, mas manteve a
postura de botar um pé dentro e outro fora do apartamento. Foi quando
eu o peguei pelo colarinho e prometi fazer um estrago na fuça dele, além
de quebrar todos os vidros do hospital. Dali a alguns minutos ele
retornou com a enfermeira, que trazia um medicamento injetável, e ele me
disse: agora ela vai dormir.
Eu já estava havia umas 30 horas sem
dormir, e deve ser por isso que não percebi que o puto do médico
continuou achando que minha filha estava tentando acordar e, para se
livrar do pai chato e ignorante, receitou um sonífero ou coisa do gênero
para minha filha.
O neurologista da minha filha estava viajando e
quando a segunda-feira amanheceu fiz um escarcéu no hospital, até que um
neurologista foi examinar minha filha e determinou o imediato
encaminhamento dela para a UTI.
Liguei para a mãe dela, que estava
no Rio e embarcaria para a Europa na terça. Já não dava para segurar a
peteca, eu estava pessimista e não queria que a mãe de minha filha
estivesse longe caso algo de pior acontecesse.
Acordei às 07:40h no
dia 17 de maio de 1994, após aquela sensação de estar caindo. Edna e eu
estávamos tranquilos, não era a primeira UTI da Ana Paula e pensávamos
que ela sairia dali sorrindo, como das outras vezes.
Antes de ir ao
hospital passamos na escolinha dela, conversamos com as professoras e a
diretora, e aí o telefone tocou: era do hospital. Ao chegar lá recebemos
a notícia de que nossa filha havia morido às 07:40, a mesma hora em que
acordei.
O corpo da minha filhinha estava na capela e, enquanto
acariciava seus cabelos eu assistia a um filme mental que me remetia a
tudo o que tínhamos vivido juntos, todas as alegrias, palhaçadas,
brincadeiras e perrengues.
Lembrei do orgulho que tinha da minha
guerreira que sempre representou um tapa na cara das verdades absolutas
da medicina. Os médicos que examinavam o eletroencefalograma dela diziam
que se tratava de um vegetal, e ela falava, cantava, brincava, era
irreverente e muito feliz. Só não andava, mas e daí?
http://assimcomovoce.blogfolha.uol.com.br/2013/11/25/a-adocao-de-um-amor-eterno/
Nenhum comentário:
Postar um comentário