ADRIANA
Regina Helena Alves Silva
Fico pensando em todo mundo que nos ajudou desde que as crianças
chegaram aqui em casa. Tem cada historia mais engraçada que a outra. Tem
a da Juliana e a salvação da dupla de mães recentes as voltas com a
primeira febre da Duda. Ligamos para a pediatra e ela nos disse:
coloquem a menina na banheira e vão dando um banho de morno para frio.
Não tivemos dúvida: a colocamos na banheira e ligamos o chuveiro...
Tadinha, ficava chorando enquanto nós, desesperadas, não sabíamos o que
fazer. Juliana ligou na hora e falou: pára tudo, tô indo praí!!!
E
ela chegou e nos ensinou a lidar com febres... mas também me ameaçou de
ser a primeira a dar uma “roupa de oncinha” para minha filha!
Muitos amigos nos ajudaram com tantas coisas, Roger, Adair, Luiz
Henrique sempre estão a postos quando precisamos de algo com o Pedro.
Até no dia que ele emburrou no shopping e disse que só ia ao banheiro
masculino, mesmo depois de nós mostrarmos a ele que todos os meninos
entravam com suas mães no banheiro feminino com uma parte especial para
crianças. Nossos amigos sempre estiveram a postos para todas essas
“emergências” e para conversar, trocar ideias e falar de como viveram
determinadas experiências com seus filhos.
Mas tem uma pessoa
que se tornou amiga nesse processo todo da adoção de Duda e Pedro, a
Adriana. Ela estava trabalhando na nossa casa havia pouco tempo quando
as crianças chegaram. Foi ela quem, nos primeiros finais de semana que
fomos autorizadas a trazê-los pra casa, nos ajudou com mamadeiras,
fraldas, comida e banhos. Ela nos ajudou, e muito, quando tínhamos a
insegurança de não saber muito bem como fazer com duas crianças, que nos
olhavam com carinhas de medo e as vezes de surpresa por estarem na
nossa casa.
Adriana está sempre onde precisamos, nunca nos
faltou. É sempre uma pessoa atenta à casa e às crianças. Nossos filhos
são amigos dos filhos dela que sempre chamamos para as festas ou então
pro fim de semana de calor na piscina do prédio. Algumas pessoas do
prédio nos olham meio que atravessado por causa da “mistura” que dizem
que fazemos. Ontem resolvi comemorar meu aniversário um pouco atrasado
mas para sair com uns amigos. Não levo nossos filhos a bares, não gosto
disto, não é lugar para crianças ficarem. Deixamos Pedro e Duda com
Adriana. Quando voltamos, eu fui levá-la em casa. Estávamos no elevador e
entrou uma vizinha que estava dando uma festa no salão do prédio ela
olhou e não viu Adriana, se virou e me cumprimentou. E continuou a “não
ver” Adriana.
Eu sempre fico pensando no que leva as pessoas a
serem assim. Porque fingir que as pessoas das quais dependemos, que são
parte fundamental de nossas vidas, são invisíveis? Não da pra chamar
isso só de preconceito, acho que é muito mais. Outro dia Adriana saiu
aqui de casa no meio da tarde de um sábado, estava andando na rua quando
viu dois rapazes se dirigindo a uma senhora idosa sentada no ponto do
ônibus. Ela entendeu que eles iam assaltá-la e correu para avisar. Os
rapazes fugiram e a mulher começou a gritar que a Adriana era “cúmplice
dos ladrões”. Com certeza, isso é mais que preconceito.
Eu
sempre digo que isso se chama ódio de classe. Somos uma sociedade
escravagista e temos raiva dos escravos terem sido libertos. Não existe
outra explicação para alguém não ver o outro no elevador. Na verdade,
este é o segundo prédio que moro aqui no Sion que faz com que algumas
pessoas subam pelo elevador “de serviço”. Eu sempre chamo os elevadores
de “da frente” e “de trás”, mas aqui chamam um de “social” e o outro de
“serviço”. Adriana sobe e desce no elevador “da frente”, o que causa um
imenso mal estar em algumas pessoas.
No outro prédio que eu
morei, chamaram a polícia para um orientando meu. Ele nem querer tocou a
campainha do apartamento da frente do meu. Olharam pelo tal “olho
mágico” e chamaram a polícia para ele. A polícia chegou e a vizinha
disse que ele havia entrado em meu apartamento e que provavelmente eu
era refém. Nesse, onde moro agora, logo que me mudei mandaram uma grande
amiga subir pelo elevador “de trás”. Antes que alguém me diga que
existe lei para isso, tenho que explicar uma coisa: tudo isso é feito
pelos funcionários do prédio, que recebem ordens nunca explícitas e
nunca assumidas. Tudo muda, os moradores, os síndicos, mas existem essas
“ordens” que nunca ninguém deu mas que continuam a vigorar.
É
neste lugar que Adriana trabalha. No nosso pedaço, o mundo parece outro
porque ela é a madrinha dos nossos filhos, o anjo que nos ajuda a
cuidar deles. Ela é nossa diarista, vem duas vezes por semana e é também
a babá das crianças quando precisamos. Nunca chamamos nenhuma outra
porque eles confiam nela e não sentem medo de nada quando estão com ela.
Quando tivemos uma empregada doméstica por algum tempo, logo que eles
chegaram, ela precisou ir embora para outra cidade. Eles ficaram muito
atrapalhados com isso. Pedro, no dia que ela se despediu deles, me
perguntou se nós íamos levá-los de volta ao abrigo. Com Adriana, eles
sabem que ela não irá embora deles. Que ela é da família assim como suas
avós, tias e primos. Assim como nossos amigos, que sempre estão
conosco.
Este mundo Brasil, no qual vivemos, torna pessoas
assim invisíveis, como se fosse possível não ver Adriana. Lutamos há
tanto para que isso se acabe mas permanece nos lugares mais fundos das
almas de quem não as tem. Não sou religiosa, mas tenho certeza que
algumas pessoas têm alma, ou auras, ou luz, ou energia boa, ou tantas
formas de dizer que no mundo tem muitas Adrianas e é isso que me faz um
pouco mais feliz ao pensar o futuro dos meus filhos neste lugar.
Regina Helena Alves Silva é professora da UFMG. Graduada em História e
Ciências Sociais, com mestrado em Ciência Política e doutorado em
História Social. Coordenadora do Centro de Convergência de Novas
Mídias-UFMG, atua nas áreas de história social da cultura, comunicação e
práticas sociais, novas tecnologias e cultura digital, culturas urbanas
e formas de participação social. Atualmente, é mãe em tempo quase
integral de Pedro e Maria Eduarda.
http://www.bhdameninada.com.br/#!adriana/c20dv
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