sexta-feira, 1 de novembro de 2013

UMA ESTÓRIA POSSÍVEL (PARA UM FUTURO PROVÁVEL DE ALGUMAS DAS CRIANÇAS BRASILEIRAS)



Não me lembro muito bem do passado mais distante. Eu sinto muito desconforto ao buscá-lo na memória. Lembro-me apenas de fatos esparsos e imagens. Infelizmente não consigo associação disso comigo hoje.

Dentre as poucas lembranças vejo, entre as barras de um portão, uma jovem mulher se abaixar e limpar a boca de uma criança que tomava um sorvete. A mulher sorria diferente. A criança tinha um semblante também diferente. Eram expressões que eu não compreendo.

Lembro ainda quando se falava de “Papai Noel”, “festa de aniversário”, “dia das crianças”, “férias”. Nunca entendi.

Era como se esse Papai Noel fosse pai de todos? Ele trazia presentes como se dizia que as pessoas faziam numa “festa de aniversário” e no “dia das crianças”? Por quê? Para que?

Um dia vi um livro que tinha um texto ilustrado com o título “Férias” – pelo menos foi o que me disseram, pois não aprendi a ler. A imagem era de dois adultos na praia e, ao fundo, duas crianças jogando uma bola. Não entendi se “férias” era quando os adultos se juntavam com as crianças, se era quando eles iam à praia ou se era o jogo com a bola.

Ouvia muito falar de família. Diziam que era uma coisa boa e que eu estava aguardando a minha. Mas, ao mesmo tempo ouvia dizer, dos adultos que conviviam comigo, que eles eram a minha família. Eu ficava confuso. Nos livros eu vi que a “família” aparecia como sendo sempre um moço, uma moça e uma ou mais crianças. É bem verdade que tinham muitas crianças onde eu estava e que existiam moços e moças no local. Mas eles diziam que trabalhavam ali. Eu não compreendia. Trabalhavam como uma família? Ou ser uma família era o trabalho deles? Trabalhar é o mesmo que “ser família”? E se ali eu tinha uma família, por que diziam que eu estava esperando por uma?

Normalmente eu evitava pensar nisso. Deixava-me muito confuso e triste. Até doía um pouco. Principalmente porque eu tinha umas marcas no corpo que quando as via lembrava de uma mulher que gritava muito. Não me recordo do rosto dela. Lembro que eu sentia fome e quando isso acontecia vinha sempre uma dor em outro lugar. Não sei se estas marcas no meu corpo são reflexos da fome ou dessa outra dor. É muito confuso para mim, eu apenas chorava quando queria comer, mas aí, sem razão, sentia outra dor forte e repentina. Até hoje minha fome não dói só no estômago. Ela percorre um trajeto na espinha. Dá calafrios e me recordo de gritos, de um vulto e de um cheiro igual ao que senti uma vez quando vi um adulto jogar um líquido transparente para acender uma fogueira.

Um dia apareceu uma mulher e me disseram que ela poderia vir ser minha mãe. Lembro-me que quando ela me viu o seu rosto apresentou a mesma expressão da mulher que limpava sorvete da boca daquela criança. Perguntei a ela se ela ia me dar sorvete e limpar minha boca. Ela ficou surpresa com a pergunta, mas respondeu que sim. Fiquei feliz. Essa moça foi algumas vezes me visitar. Eu adorava ficar com ela e quis que ela nunca se fosse. Sonhava em poder adormecer ouvindo sua voz e sair na rua segurando sua mão.

Depois de um tempo aquela moça deixou de ir me ver. Disseram-me que ela tinha que procurar outro filho, pois minha mãe “biológica” me queria e ela não podia mais me visitar. Não entendi. Porque essa coisa de mãe era tão complicada? Não bastaria gostar? Eu nem sabia que eu tinha uma mãe, como ela apareceu agora? Não entendi novamente, mas achei legal essa “mãe”, pois disseram que ela era “biológica”. Devia ser alguém importante com esse nome. Acabei entendendo que uma pessoa pode te escolher para filho e te olhar daquele jeito legal, mas que se esse pessoal importante do “bio-não-sei-o-quê” aparecer, temos que aguardar por ela o tempo que for preciso, mesmo se encontrarmos uma mãe de verdade, daquelas que limpam sorvete da boca da gente.

E o tempo passou. Disseram então que eu iria para casa. Casa? Eu também tinha casa? E lá fui eu. Na casa tinha uma mulher, um homem e outras crianças. A mulher me lembrava o vulto que me doía quando sentia fome. O homem me lembrava o “cheiro de acender fogueira”. Naquele lugar as crianças eram muito agressivas. Quando os maiores queriam algo, batiam nos menores. A regra era gritar ou bater, senão não se conseguia nada. Eu era menor e não gritava. Apenas me calei e apanhei.

Apesar de tudo não me preocupei, pois disseram que ali era o meu “núcleo bio-não-sei-o-quê”. Devia ser algo importante. Depois disseram que aquela era a minha família e que eu tinha ficado um tempo longe para que eles pudessem me receber de volta. Ainda não entendi a relação do tal “núcleo” com a “família”. Também não entendi porque tive que passar um tempo fora, nem porque tive que voltar.

Eu lembro que o tempo passou, mas não guardei nada além de medo e indiferença. Lembro que buscava ficar sempre quieto e sem chamar atenção. O menor movimento era razão para levar um grito ou uma pancada sem ver de onde vinha. O homem batia na mulher. A mulher batia nas crianças. As crianças batiam umas nas outras. A polícia estava sempre lá, ou os adultos na polícia.

Um dia um homem começou a conversar comigo à frente da casa em que vivíamos. Deu-me sorvete. Eu nunca tinha tomado sorvete, apenas me lembro da mulher que uma vez tinha me prometido e depois sumiu. O moço até limpou minha boca. Foi diferente do que vi naquele dia através dos portões, mas ele limpou. O moço passou a me visitar. Às vezes eu saía com ele. “Meus pais” passavam o dia fora, então eu saía para não ficar apanhando dos outros em casa. Era muito divertido ficar com esse moço. Ele tinha dinheiro. Comprava muita coisa. De vez em quando ele pedia para eu entregar algo a alguém. Eram pacotes embrulhadinhos de um matinho ou de um pozinho branco que um dia vi na padaria fazendo pão com ele. Eu me sentia útil e importante. Comecei a ganhar dinheiro. Ninguém podia mais bater em mim, mesmo alguns adultos.

E assim meus dias se seguiram e eu passei a entender tudo: Eu entendi que família é um lugar onde todo mundo briga, mas mora junto e que trabalho é entregar umas bolsinhas a umas pessoas diferentes para ganhar dinheiro - assim todo mundo olha para você com medo e respeito. Então decidi que não quero ter “família” porque é chato. Mas vou sempre trabalhar até morrer grande e velho aos 20 anos como o “Zé da boca”.

Vitor Bizerra

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