sábado, 22 de junho de 2013

CUMPLICIDADE INDECENTE



Tenho denunciado com frequência a existência de uma trágica realidade para crianças e adolescentes brasileiros: condenados ao abandono em instituições, não tem respeitado o direito constitucional a viver em família, bem debaixo dos narizes empertigados daqueles que têm o dever de zelar por sua proteção.

Uma razão para a delonga demasiada de soluções eficazes para o abrigamento indiscriminado é a demagogia paralisante que assola as relações sociais no Brasil. Este movimento de adoração da pobreza como causa de todas as mazelas sociais justifica qualquer atividade ilícita praticada pelos que nela se encontram. Por esta corrente de pensamento que perniciosamente se instala nas consciências de profissionais pagos para garantir direitos da criança, tudo, inclusive o abrigamento e o abandono de crianças, se justifica pela pobreza. Este raciocínio é frontalmente oposto ao mandamento constitucional e se baseia em argumentação muito pouco sólida.

Com efeito, dizer que a pobreza autoriza o abrigamento por tempo indeterminado é privilegiar o direito do adulto em detrimento do direito da criança. Inverte-se a lógica da proteção à criança para se consagrar sua “coisificação”, já que passa ela a ser “pertencente” a sua família e ficar “guardada” pelo tempo que for necessária a sua reestruturação. O mais curioso é que os que levantam esta bandeira atribuem ao princípio da proteção integral o dever do poder público de proteger a família para que ela possa receber sua criança de volta. Sendo insuficientes as políticas públicas para tal fim, a família não poderia ser “penalizada” com a “perda” de seu filho. O raciocínio não é muito profundo em termos de intelectuais e se despedaça ao se constatar a realidade dos fatos.

Primeiro, é necessário se afirmar que a proteção integral se destina à CRIANÇA. É ela que deve ser integralmente protegida do abandono em instituição, preferencialmente voltando para sua família biológica, mas se isso não for possível no curto prazo, deve ser destinada à adoção para que sua infância não pereça em função de problemas de adultos. Em segundo lugar, dizer-se que a pobreza é “a” causa do abandono não corresponde inteiramente à verdade e é uma injustiça com a maioria esmagadora das pessoas pobres do país que, diante das maiores dificuldades, lutando contra tantos obstáculos, criam seus filhos em sua companhia.

Este raciocínio é compatível com “o mito do amor materno” segundo o qual toda a mãe e todo pai amam seus filhos biológicos de uma forma socialmente uniforme. Nada mais equivocado: há pais e mães biológicos que não tem apreço por seus filhos, por inúmeras razões que não cabem ser aqui discutidas, demonstrando com a falta de cuidado seu desamor. O cuidado é o corpo de delito do afeto. A ausência do primeiro importa na inexistência ou na insuficiência do segundo. É compreensível que o alcoolismo, o uso de drogas, a ignorância e a criminalidade, dentre outros fatores, possam levar as pessoas a este estado de desapego com seus filhos. É possível e desejável que se tente ajudar estes adultos e promover sua capacitação para a vida em sociedade.

Só não é admissível que os filhos destas pessoas paguem com sua infância, trancafiados em instituições, esperando recuperações improváveis e demoradas, quando em grande parte dos casos a recuperação do adulto evidentemente é improvável em curto prazo.

Deixar uma criança anos a fio num abrigo é uma ilegalidade abominável que não pode ser tutelada pelo Poder Público, sob pena de indecente cumplicidade.

Savio Bittencourt

Nenhum comentário: