Hoje J. e L., casados, 32 anos, foram a
loja de eletrodomésticos e devolveram a geladeira nova que compraram há 6
meses. O vendedor informou que o prazo para a devolução da mercadoria era de 7
dias a partir da compra e que não poderia receber o equipamento de volta –
depois de 6 meses de uso – e muito menos devolver o dinheiro aos compradores.
Instalou-se a celeuma. Os compradores com o Código de Defesa do Consumidor em
punho, vendedor, gerente e demais empregados da loja em coro dizendo não
aceitar a devolução da geladeira. Consumidores informando terem esgotado as
possibilidades de equacionar a questão com o fabricante, com o vendedor e com a
assistência técnica, sendo a devolução do equipamento o último recurso. A
confusão foi tanta que parou uma rua no Centro da cidade. O problema da
geladeira foi identificado como vício oculto.
Hoje M. e C., casados, habilitados, 32
anos, foram a Vara da Infância e devolveram P., que levaram (em guarda
provisória) há 2 anos. A equipe técnica questionou o motivo e recebeu como
resposta que P. apresentou defeito. Aparentemente um “vício oculto” (Código de
Defesa do Consumidor Art. 26, § 3º, que
“tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que
ficar evidenciado o defeito”), que apareceu agora, depois de dois anos de
convivência. Não ficou muito claro qual seria o “defeito” de P. Parece que
fazia birra, não gostava de fazer os deveres e estava comportando-se como
pré-adolescente. M. e C. não se sentiram preparados para lidar com esses “problemas”.
M. e C. não
buscaram, ao longo de 2 anos, qualquer apoio psicoterápico, não buscaram ajuda,
não frequentaram grupo de apoio à adoção tardia.
M. e C.
fizeram um experimento e entendem que não foi satisfatório, assim, o destino do
mesmo é o descarte.
P. foi ouvido. Disse não saber o que
tinha acontecido, que não queria voltar para o abrigo, que queria ficar com
seus pais M. e C. Não adiantou, os pais de P. não o queriam de volta e foram
embora da vara lá deixando P., duas malas, uma bicicleta, um skate.
Despediram-se, desejaram sorte, entraram no carro e retornaram para um “mundo
perfeito”.
Não ocorreu qualquer tumulto no
acompanhamento da devolução desse “produto”.
P. voltou ao abrigo – é mais fácil
tratar por abrigo as entidades de acolhimento institucional – e encontrou o
local superlotado – hoje não existem vagas nas entidades de acolhimento
institucional da capital. P. dividiu um quarto com mais 5 crianças, manteve
suas roupas na mala e tentou dormir. Acordou. Sua bicicleta já era a festa da
garotada, assim como seu skate. P. não era mais o dono desses bens, pois, no
abrigo não existe tal individualização, no abrigo a é tudo “coletivo”. P., 10
anos, não entende o que aconteceu. Estudava em um bom colégio de classe média
alta no bairro da Água Bela e acabara de receber uma camiseta de um colégio
público próximo ao abrigo. P. estudava inglês, fazia futebol e natação. P.
soube que não poderia mais realizar tais atividades, pois, a realidade era outra.
Passou a ser acompanhado pela psicóloga do abrigo. Ele parecia não entender o
que acontecera. Tornou-se introspectivo, ficava horas olhando para o portão a
espera de alguém que nunca vinha.
M. e C. foram processados, vão ser
obrigados a pagar um salário mínimo por mês a P., além de pagar psicólogo para
o ex-filho. M. e C. foram inabilitados, jamais farão parte novamente do
Cadastro de Habilitados à Adoção. M. e C. estão revoltados, tentaram fazer uma
caridade e foram punidos pelo “maldito” judiciário.
Essa é uma ficção tão real, tão
presente, tão revoltante. Onde ou quem está falhando na preparação dos
adotantes? Em que momento esquecemos-nos de mencionar que criança não é uma
coisa e que o ECA não é o CDC? Onde foi pintada a adoção de forma utópica? Quem
disse que a trajetória não seria sinuosa?
O judiciário tem sua parcela de culpa?
Sim, tem, mas a maior culpa é do poder legislativo que não tem preparação para
legislar, que faz leis sem analisar a realidade fática e, no caso de crianças e
adolescentes abarcados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não observou
que o tempo da infância e da adolescência é único, rápido, fugaz. Uma lei para
ser eficaz, direta, precisa ser elaborada sem pressões dessa ou daquela
bancada, sem pressões política-ideológica-partidária.
A Lei 12.010/2009, que alterou o
Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe avanços indubitáveis, mas, falhou
ao não determinar a forma de cumprimento dos prazos que determina.
O art. 163 do ECA determina que a
concretização da Ação de Destituição do Poder Familiar se dará em 120 dias –
note-se: 120 dias e não 5 anos -, mas tal prazo jamais será cumprido. É
necessário alterar vários outros artigos, alterar o sistema recursal afetos à
infância e a adolescência. É preciso a criação de um grupo de trabalho formado
por advogados, magistrados, membros do Ministério Público e da Defensoria
Pública para reescrever as partes que tratam da adoção e da destituição do
poder familiar no ECA, dentre outras. Não pode ser uma alteração inconsequente,
é necessária uma alteração que realmente atenda ao melhor interesse da criança.
Até lá, afinal existem
tantas outras matérias importantes a serem analisadas (PL 2489/2011), e outras
ainda mais importantes a serem descartadas de qualquer tipo de análise e
totalmente extirpadas (PEC 37), precisamos, como parcela pensante da população
com olhos voltados à infância, buscar alternativas, formas de proceder para
evitar que crianças e adolescentes sejam desconsideradas como sujeitos de
direito, sendo objeto de devolução, tratadas como “coisas” descartáveis.
Repensar nosso papel – enquanto componentes
de grupos de apoio à adoção – na formação daqueles que devolvem, repensar o
papel das equipes técnicas – absolutamente assoberbadas de trabalho e às vezes
inexistentes -, repensar o papel do Ministério Público – necessário que atue em
face de todos os que devolvem crianças em processo de adoção -, repensar o
papel da Defensoria Pública que atravanca o já moroso judiciário com um sem
número de recursos estéreis.
Necessário, alias indispensável, a
criação de câmaras especializadas em infância, obviamente que acumulando outras
competências afins tais quais família, órfãos e sucessões, mas, excluindo o julgamento
de causas tão específicas por experts em consumidor, empresarial, societário, tributário,
etc. A clínica geral em direito, mesmo para magistrados com notório saber
jurídico, não é adequado face às especificidades da matéria infância onde a
atuação há de ser vocacionada.
Separação de varas com competência em
infância para que sejam únicas sem a acumulação de competências – existem varas
da infância que acumulam idosos, outras civil, outras criminal, família, etc.
E na esteira das manifestações
populares: A população de abrigados/acolhidos não pode ir às ruas para fazer
valer os seus direitos; cabe a nós servir de voz às crianças e adolescentes
alijados do direito à convivência familiar e comunitária.
Seria lindo vermos 80.000 crianças e
adolescentes rumo ao Planalto com faixas com frases e palavras de ordem: PELO
RESPEITA DA CRIANÇA COMO SUJEITO DE DIREITO; POR UMA VERDADEIRA LEI DE ADOÇÃO;
PELA CELERIDADE DO JUDICIÁRIO; PELO DIREITO DE TER UMA FAMÍLIA; POR EDUCAÇÃO,
SAÚDE, EMPREGO, CIDADANIA.
Vamos assumir esse papel?
Silvana do Monte Moreira
ECA – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
CDC – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
PL 2489/2011 - Acrescenta dispositivo na Lei nº
8.072, de 25 de julho de 1990 inserindo a prática da corrupção como crime
hediondo.
PEC 37/2011 - Proposta de Emenda à Constituição – Autor Lourival Mendes - PTdoB/MA - Acrescenta o § 10 ao art. 144 da
Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal
pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal.
80.000 – número aproximado de crianças e
adolescentes em acolhimento institucional.
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