FAMÍLIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITA. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO. CRIANÇA ABANDONADA PELA GENITORA. AUSÊNCIA DE SÓCIO-AFETIVIDADE. INTERESSE DO MENOR.
DECISÃO TJDFT
PODER JUDICIÁRIO DA UNIÃO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS
Órgão-1ª Turma Cível
Processo N.-Apelação Cível 20090130017879APC
Apelante(s)-V. G. S.
Apelado(s)-M. J. B. S.
Relator-Desembargador FLAVIO ROSTIROLA
Revisor-Desembargador TEÓFILO CAETANO
Acórdão Nº-675.405
E M E N T A
APELAÇÃO. FAMÍLIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITA. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO
AFETIVO. CRIANÇA ABANDONADA PELA GENITORA. AUSÊNCIA DE
SÓCIO-AFETIVIDADE. INTERESSE DO MENOR. PREVALÊNCIA.
1. Conforme a
Constituição Federal, o Código Civil e o Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA, a família consiste na base da sociedade e direito dos
menores impúberes, cujos interesses prevalecem sobre o dos pais, em
razão de sua vulnerabilidade.
2. É elemento essencial da família,
em seu conceito hodierno, mais do que a biogenética, a
sócio-afetividade, fundamental ao desenvolvimento pessoal de seus
integrantes, especialmente dos filhos. Por essa razão, em que pese o
ordenamento jurídico pátrio possibilitar diversos arranjos e rearranjos
familiares, os relacionamentos afetivos dos pais não podem influenciar
negativamente sobre seu relacionamento com seus filhos, que deve ser
resguardado em favor dos interesses dos menores.
3. Diante da
conclusão dos estudos psicossociais realizados pelas equipes
interprofissionais deste Tribunal, que afirmaram pela impossibilidade de
se conciliar o vínculo afetivo com o parentesco biológico, sem que haja
riscos psicológicos ao infante, não há como se impor o regime de
visitas.
4. Negou-se provimento ao apelo, mantendo-se incólume a r. sentença.
A C Ó R D Ã O
Acordam os Senhores Desembargadores da 1ª Turma Cível do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, FLAVIO ROSTIROLA -
Relator, TEÓFILO CAETANO - Revisor, SIMONE LUCINDO - Vogal, sob a
Presidência do Senhor Desembargador TEÓFILO CAETANO, em proferir a
seguinte decisão: CONHECER E NEGAR PROVIMENTO, UNÂNIME, de acordo com a
ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 8 de maio de 2013
Desembargador FLAVIO ROSTIROLA
Relator
R E L A T Ó R I O
Trata-se de apelação interposta por V. G. S., contra sentença proferida
nos autos de ação de regulamentação de visitas, ajuizada em desfavor de
M. J. B. S., guardião legal do menor A. K. G. S., por meio da qual o
douto sentenciante julgou improcedente o pedido da genitora do menor, de
exercício do seu direito de visitas.
Em suas razões, afirma que
deixou o menor sob os cuidados do seu ex-companheiro e anuiu com a
adoção, em razão de não ter condições financeiras e disponibilidade de
tempo para criar o seu filho. Porém, não imaginava que o menor seria
entregue aos cuidados do ora apelado, cuja índole desconhece.
Nesse
contexto, explica que se manifestou contra a transferência da guarda do
menor para o apelado e, visando garantir seus direitos de mãe ajuizou a
presente ação visando regulamentar as suas visitas ao filho, que nunca
foram permitidas pelo guardião.
Sustenta que é certo que a criança
não possui vínculo afetivo com a apelante, isso se dá pelas barreiras
que são impostas ao relacionamento entre eles, inclusive no que se
refere às medidas judiciais que vem sendo tomadas, uma vez que não tem
protegido o direito tanto da criança quanto da genitora à convivência
familiar (fl.129).
Argumenta que não há comprovação de qualquer ato
que desabone a genitora na qualidade de mãe, sendo incabível impedir o
direito de visitar garantido no ordenamento jurídico.
Em
contrarrazões, o apelado aduz que o menor não tem laço afetivo com a mãe
biológica, e que o deferimento da medida traria transtornos
psicológicos ao menor, que, conforme laudo técnico realizado por este
Tribunal, somente reconhece o apelado e sua esposa como seus genitores.
A i. Procuradoria de Justiça oficiou pelo não provimento da ação (fls.166/170).
É o relatório.
V O T O S
O Senhor Desembargador FLAVIO ROSTIROLA - Relator
CONHEÇO do recurso, pois presentes os pressupostos legais.
Cuida-se originariamente de ação de regulamentação de visitas ajuizada
pela genitora do menor, nascido em 13 de março de 2006, em desfavor dos
guardiões, alegando que o infante permanece em companhia dos requeridos
desde tenra idade, havendo nenhum contato com a requerente ao longo de
sua vida.
Relata que, em razão de problemas de relacionamento com J.
E., seu companheiro entre 2006 e 2007, e de dificuldades financeiras,
viu-se compelida a deixar o menor aos cuidados de seu ex-companheiro.
Ele, por sua vez, deixava a criança com sua própria genitora, ocasião em
que o menor passou a conviver com os atuais guardiões, M. J. B. S. e
sua esposa.
A requerente sustenta que não concorda com o pedido de
guarda postulado por M. J. B. S., porquanto desconhece sua índole e está
sendo impedida de conviver com seu filho, em verdadeira violação aos
direitos da criança no que concerne com a convivência harmônica com sua
família.
Vejamos.
A Constituição Federal define a família como a
base da sociedade, razão por que tem proteção especial do Estado, nos
termos do art. 226.
Há que se ressaltar, contudo, que o direito de
família deve ser sempre regulamentado em face dos interesses do menor,
vulnerável na relação familiar, a fim de lhe propiciar bem-estar e
amparo físico, moral e psicológico, elementos integrantes da dignidade
da pessoa humana, princípio fundamental do ordenamento jurídico pátrio.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, como
preconizado em seu art. 19, assegura aos menores o direito à convivência
familiar, tanto materna quanto paterna, pressupondo que tal convivência
contribui para o seu bom desenvolvimento.
Pela mesma razão é que,
na hipótese de destituição de casamento, o Código Civil, a fim de
proteger a pessoa dos filhos, regula o direito de guarda e o direito de
visitas. O art. 1589 desse Diploma dispõe:
“Art. 1.589. O pai
ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e
tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou
for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.
Convém ressaltar, contudo, que os critérios que definem família e
maternidade/paternidade e fundamentam o direito de guarda e visita
extrapolam a biogenética e o poder-dever parental, sendo a
socioafetividade requisito para a convivência familiar salutar e para o
bom desenvolvimento dos filhos, conforme respeitada doutrina1 e
disposições do Código Civil, em seu art. 1583, §2º, inciso I, e art.
1.584, §5º.
Considerando esses pressupostos, passo à análise do presente caso.
Resta incontroverso nos autos que o menor em questão, A. K. G. S., hoje
aos sete anos de idade, é filho da requerente, conforme atesta sua
certidão de nascimento (fl.08). Ainda, inconteste que a Apelante
praticamente nunca conviveu sob o mesmo teto com o filho e que o menor
reconhece como pai e mãe seus atuais guardiões, o requerido e sua
esposa.
Outrossim, restou demonstrado que o menor não tem
conhecimento da respectiva história, sequer conhece a apelante ou tem
conhecimento de que ela é sua mãe biológica.
Os estudos
psicossociais realizados pelas equipes interprofissionais deste Tribunal
concluíram pela impossibilidade de se conciliar o vínculo afetivo com o
parentesco biológico, por não existir, ao menos na atual conjuntura dos
fatos, a necessária preparação das partes e do menor para se dar início
a uma aproximação entre mãe e filho, sem que haja riscos psicológicos
ou maiores danos ao infante.
Para a exata compreensão da
controvérsia, vale destacar, neste ponto, trecho esclarecedor constante
no parecer psicológico elaborado pela Seção de Colocação em Família
Substituta deste Tribunal:
A despeito do interesse relatado em
petição da genitora da criança em reaver a guarda do filho e/ou realizar
visitas, a criança A. K. não constituiu laço afetivo com sua genitora
em virtude de ter estado desde tenra inserido no núcleo familiar do
guardião Sr. M. J. Apesar de não ter laços biológicos com o guardião e
seus familiares, a criança reconhece o Sr. M. J. como pai, e a
companheira deste, Sra. V., como mãe. A. K. reconhece ainda como irmão, o
filho do casal, A.G., 7 meses. A criança demonstra ainda pertencimento
socioafetivo extenso aos demais familiares do Sr. M. e da Sra. V., sua
avó, a Sra. M. J. e tia D., demais avós, tios e primos. Ressalte-se que
A. K. hoje já está com 6 anos de idade e tem suas necessidades materiais
e emocionais atendidas junto ao núcleo familiar guardião. Do ponto de
vista psicológico, o afastamento ou ameaça da união da criança com este
núcleo familiar (sobretudo das figuras materna e paterna designadas como
Sra. V. e Sr. M.J) poderia ser bastante prejudicial ao seu
desenvolvimento psíquico. Ressalte-se que em virtude da falta de acordo e
da existência de um clima de desconfiança e ameaça de risco para a
criança, não houve aproximação (consenso) entre as partes litigantes que
pudesse beneficiar a criança. Na época ainda em que eram realizadas
visitas da criança ao Sr. José Evangelista (que atualmente pleitea a
extensão do poder familiar e com quem a criança também não temparentesco
biológico) foi relatado que a criança retornava suja, assada,
malcheirosa, sem os devidos cuidados em relação à alimentação (dieta
restritiva prescrita por pediatra) e trazia relatos de ser castigada por
fazer xixi na cama. O guardião reafirmou que a Sra. V. não é
companheira do Sr. J. E., nunca demonstrou interesse no filho e acusa a
mesma de fazer uso de substâncias entorpecentes e de fazer ameaças ao
guardião e familiares ("isso não vai ficar assim") que foram devidamente
registradas em boletim de ocorrência (fl. 80 dos Autos Guarda
10480-5/08). O guardião acredita que o interesse da genitora pelo filho
só ocorreu por incentivo e despeito do Sr. J. E. por não ter visto
prosperar sua intenção de adotar a criança. Segundo relato, o Sr. J. E.
também usa e vende drogas e poderia fornecer entorpecentes à genitora em
troca do apoio desta. O guardião da criança não acredita no interesse
genuíno da genitora em se aproximar da criança, posto que esta só se
manifestou neste sentido quando o Sr. J. E. teve sua pretensão de adoção
recusada.
(...)
Quanto à ação de regulamentação de visitas
1787-9/09 proposta pela genitora, entende-se a partido dos dados obtidos
que não oferece vantagem à criança, podendo-se inclusive constituir em
risco biopsicossocial para a mesma (fl.157).
Nesse contexto,
conclui-se que, ao se considerar as circunstâncias do caso, (a idade da
criança, que ainda tem limitações psicológicas para compreender a
complexidade da situação; a inexistência, desde os primeiros meses de
vida, de contato entre mãe e filho; a situação de conflituosidade entre
guardiões e a genitora, que dificulta ainda mais a aproximação das
partes nessa fase da vida da criança, e considerando a inexistência de
qualquer convívio entre mãe e filho), não há como deferir o pedido e
impor as visitas.
Desse modo, por refletir a melhor solução ao caso,
adoto as razões de decidir do douto sentenciante agregando-se aos
fundamentos da minha convicção sobre o caso, motivo pelo qual as passo a
transcrever:
O direito de visitas deve ser sempre
regulamentado com lastro na solidariedade familiar, nas obrigações
resultantes do pátrio-poder e, notadamente, em face dos interesses do
menor, a fim de lhe propiciar um melhor desenvolvimento moral e
psicológico. In casu, restou comprovado que o menor não possui vínculos
afetivos com a apelante, convivendo com o recorrido praticamente desde
seu nascimento, conforme laudo constante às fls. 146/157 destes autos, à
propósito: "Segundo relato do guardião, Sr. M. J., a criança foi
inserida no seu lar praticamente desde o seu nascimento, e em definitivo
desde os 06 meses de idade. Foi relatado que a genitora (V.) deixaria a
criança no hospital após o parto, mas que o Sr. J E (com quem a Sra. V.
teria tido um relacionamento) a pegou e deixou na casa de àua mãe, Sra.
M. J., avó da Sra. V., companheira, do Sr. M., que também compunha este
núcleo familiar. No início, eventualmente, a criança era levada pelo
Sr. J E, mas retornava destas visitas suja, asada, malcheirosa, ou seja,
com sinais de maus tratos. (...) A despeito do interesse relatado em
petição da genitora da criança em reaver a guarda do filho e/ou realizar
visitas, a criança A. K. não constituiu laço afetivo com sua genitora
em virtude de ter estado desde tenra, (sic) inserido no núcleo familiar
do guardião Sr. Marcelo Júnio. Apesar de não . ter laços biológicos com o
guardião e seus familiares, a criança reconhece o Sr. M. J. como pai, e
a companheira deste, Sra. V., como mãe. A. K. reconhece ainda como
irmão, o filho do casal, A. G., 7 meses. (...) Quanto à ação de
regulamentação de visitas 1787-9/09 proposta pela genitora, entende-se a
partir dos dados obtidos que não oferece vantagem à criança, podendo-se
inclusive constituir em risco biopsicossocial para a mesma." Desta
forma, a criança se encontra plenamente adaptada ao ambiente familiar
atual, não se revelando benéfica a concessão do direito de visitas em
prol da recorrente e, inclusive, representando risco ao menor em caso de
seu deferimento. Ademais, conforme bem salientado na r. sentença, "De
se ressaltar também a negligência da genitora, pois mesmo tendo a seu
favor decisão judicial que lhe autorizou visitar o filho não foi capaz
de buscar, por meio das vias legais, a efetivação da referida decisão'
Neste sentido, a jurisprudência desse Egrégio Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios, à propósito: "AGRAVO DE INSTRUMENTO.
REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. INTERESSE DO MENOR. PREVALÊNCIA. 1. Na
regulamentação de guarda e de visitas deve-se atentar para o interesse
do menor, buscando sempre o seu bem estar. 2. Agravo parcialmente
provido." (Acórdão n.614783, 20110020183611AGI, Relator: ANTONINHO
LOPES, 4a Turma Cível, Data de Julgamento: 18/01/2012, Publicado jio
DJE: 06/09/2012. Pág.: 179) "AGRAVO DE INSTRUMENTO. GUARDA. SITUAÇÃO DE
RISCO. INTERESSES DO MENOR. I - Nas ações de guarda, as decisões
judiciais devem sempre considerar a solução que melhor resguarde os
interesses do menor, os quais suplantam quaisquer outros juridicamente
tutelados. II - A situação de risco vivenciada pela criança junto aos
genitores, sua tenra idade e ò fato de encontrar-se estabelecida em novo
ambiente familiar desde os seis meses de idade, bem como a ausência de
qualquer elemento a não recomendar a manutenção do exercício da guarda
por quem a detém justificam o indeferimento do pedido liminar de busca e
apreensão do menor. III - Negou-se provimento ao recurso." (Acórdão
n.541298, 20110020077370AGI, Relator: JOSÉ DIVINO DE OLIVEIRA, 6ª Turma
Cível, Data de Julgamento: 10/10/2011, Publicado no DJE: 20/10/2011.
Pág.: 171) Assim, o decisum monocratico não está a merecer reforma,
razão pela qual deve ser mantido por seus próprios fundamentos.
Por
outro lado, importante frisar que a regulamentação de visita pode se
iniciar a qualquer momento, se advier situação favorável à aproximação
ou fator que recomende a modificação no interesse da menor, que
prevalece sobre os interesses da genitora.
Por essas razões, NEGO PROVIMENTO ao apelo, mantendo inalterada a r. sentença.
É o meu voto.
O Senhor Desembargador TEÓFILO CAETANO - Revisor
Com o Relator.
A Senhora Desembargadora SIMONE LUCINDO - Vogal
Com o Relator.
D E C I S Ã O
CONHECER E NEGAR PROVIMENTO, UNÂNIME.
Sobre o tema, confira-se: LUZ, Antônio Fernandes da. Laços de afeto e
solidariedade nas relações parentais. In: Família e Jurisdição. Vol. II.
Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2008 (pp 19-20); e ANDRIGUI, Fátima Nancy;
KRÜGER, Cátia Denise Gress. Coexistência entre a socioafetividade e a
identidade biológica – uma reflexão. In: Família e Jurisdição. Vol. II.
Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2008 (pp 1-2).
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