Maria Berenice Dias Advogada especializada em Direito das Famílias Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM |
Ao menos até o atual
estágio da ciência genética, todas as pessoas
são filhas de uma mulher. Todos são gerados no ventre de
uma pessoa do sexo feminino. Esta sempre foi uma verdade tão
evidente que é latina a expressão: mater semper certa
est. A mãe é sempre certa.
Quanto à paternidade,
a verdade nunca foi tão evidente, ou melhor, tão
aparente. Mas a necessidade de se certeza do vínculo de
filiação paterna impôs uma série de
pressuposições de modo a chegar-se a uma
presunção. Para dizer que o pai sempre é o marido
da mãe, foi preciso fazer as mulheres acreditarem que a
virgindade tinha valor. Ou seja, manter íntegro o hímen
lhe garantia a condição de pessoa séria e
honesta. Pureza, castidade e recato davam às jovens a garantia
de que iriam conseguir subir ao altar. Sempre foi este o dado que as
diferenciava das chamadas mulheres de "vida fácil". Qualidade
que nunca ninguém conseguiu entender muito o
porquê. A tarefa delas, aliás, sempre foi das mais
áridas: assegurar prazer sexual sem qualquer contra partida, a
não ser de natureza financeira. Mas certamente pagavam um
preço muito caro: viver à margem da sociedade. Recebiam
toda a sorte de adjetivações para lá de
desrespeitosas e, claro, não tinham o direito de amar.
Não podiam sequer embalar o sonho de casar com quem se
deliciava com suas carícias. Na eventualidade de ocorrer
gravidez - algo muito frequente antes do surgimento dos métodos
contraceptivos - era impositivo que abortassem. Afinal, o filho jamais
poderia ter um pai, um nome, uma família. Esta
marginalização, aliás, era consagrada legalmente,
o que deixava os homens em situação para lá de
confortável. Os filhos havidos fora do casamento eram
considerados ilegítimos, bastardos. Eram condenados a serem
filhos da puta.
A necessidade de as
moças casarem virgens era imposta pelos costumes. O
lençol manchado de sangue era exposto no balcão da casa,
motivo de júbilo para as famílias dos noivos.
Também nesta seara havia a interferência da lei. A
ausência da virgindade configurava erro essencial de pessoa e
garantia ao marido o direito de pedir a anulação do
casamento.
Mas havia mais um
ingrediente para garantir a certeza da paternidade. A mulher casada
precisava manter uma postura de recato e seriedade. Seu lugar era o
lar, para dirigir a casa, criar os filhos e cuidar do marido. Este se
tornava o seu senhor. A lei o considerava o cabeça do casal, o
chefe da sociedade conjugal. Mas tinha mais. Por décadas, a
mulher ao casar, perdia a plena capacidade, ou seja, restava meio
idiota. Nada podia fazer sem a assistência do marido. Sequer
podia trabalhar "fora" sem sua expressa
autorização.
Assim ficava fácil.
Se o homem casava a com uma virgem, que nada podia fazer sem a sua
aquiescência e a mantinha refém no lar, claro que o filho
que ela tivesse só poderia ser filho dele. Esta
ilação transformou-se em presunção legal.
Até hoje o marido pode, sem a presença da esposa,
registrar o filho como seu. Basta comparece ao cartório
acompanhado de duas testemunhas munido de uma certidão de
casamento e da declaração de nascido vivo fornecido pela
maternidade. Já a mãe não pode registrar o filho
em nome do marido se ele não se fizer presente no
cartório.
A possibilidade de registro
pelo pai existe no casamento, mas não na união
estável. O companheiro, ainda que tenha em mãos um
contrato de convivência ou até uma sentença
declaratória de união estável, não pode
proceder ao registro do filho. Nada disso basta. Já o casado
nem precisa comprovar a concordância da mãe para
tornar-se pai. A explicação é para lá de
bizarra: no casamento existe dever de fidelidade enquanto na
união estável o compromisso é só de
lealdade. De qualquer modo, esta esquisita presunção nem
é de paternidade, mas de fidelidade da mulher ao seu
marido.
Mas se tudo isso era
necessário pela dificuldade em saber quem é o pai de
alguém - até porque, em nome da moral e dos bons
costumes relações sexuais acontecem a descoberto de
testemunhas - dois acontecimentos não permitem que persistam
estas práticas. Primeiro foi o surgimento da possibilidade de o
vínculo parental ser afirmado com alto grau de certeza. A
partir da identificação do código
genético, através do exame do DNA, nada existe de mais
seguro para dissipar qualquer dúvida do genitor.
Esta descoberta teve efeito
de outra ordem. Sepultou de vez o tabu da virgindade, que perdeu
significado como elemento qualificador da mulher. Sua honradez
não mais depende da integridade e seu hímen. De outro
lado, nas ações investigatórias de paternidade, a
alegação de que a mãe poderia ter tido contato
sexual com mais de uma pessoa - argumento conhecido pela feia
expressão exceptio plurium concubentium - deixou de
servir de justificativa para a improcedência da
ação. A vida sexual da mãe não cabe ser
invocada como meio de defesa.
O outro acontecimento
revolucionário foi o surgimento das técnicas de
reprodução assistida. As pessoas não mais
são frutos exclusivamente de uma relação sexual
entre um homem e uma mulher. Bancos de sêmen,
fecundação in vitro, gestação por
substituição fez pluralizarem os vínculos
parentais. Hoje em dia para alguém ser pai ou ser mãe
não precisa ter um par.
Agora nem mais a maternidade
é certa. Mãe passou a ter adjetivos. Nem sempre a
mãe biológica é a mãe gestacional. E
talvez nenhuma delas seja de fato a mãe registral. Ou seja,
mãe não é somente aquela que teve um óvulo
fecundado e nem quem o carregou no ventre por nove meses. Para ser
mãe nem é preciso participar do processo reprodutivo.
Mãe é quem deseja ter um filho. É o que basta
para ser reconhecido o direito de registrar como seu o filho que
não deu à luz e nem tem sua carga genética. O
mesmo acontece com relação ao pai. Deixou de ser
exclusivamente o marido da mãe.
Assim, estão
sepultadas as presunções de parentalidade.
Principalmente a partir do reconhecimento das uniões
homoafetivas, a quem a justiça assegurou acesso ao casamento.
Resolução do Conselho Federal de Medicina autorizou o
uso das técnicas de procriação assistida aos
parceiros homossexuais. A persistir tais presunções, por
elementar princípio da igualdade, não é
possível impedir que seja registrado como de ambos, o filho do
casal de homens, ou de mulheres. Caso eles sejam casados, vivam em
união estável ou comprovem terem se submetido às
técnicas de reprodução assistida, é o que
basta para procederem ao registro da dupla maternidade ou paternidade.
Não há forma
mais humana, ágil, efetiva e afetiva para que crianças
saibam desde sempre de quem são
filhos!
|
Silvana do Monte Moreira, advogada, sócia da MLG ADVOGADOS ASSOCIADOS, presidente da Comissão Nacional de Adoção do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, Diretora de Assuntos Jurídicos da ANGAAD - Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção, Presidente da Comissão de Direitos das Crianças e dos Adolescentes da OAB-RJ, coordenadora de Grupos de Apoio à Adoção. Aqui você encontrará páginas com informações necessárias aos procedimentos de habilitação e de adoção.
sábado, 10 de agosto de 2013
De quem sou filho?
Postado por
Silvana do Monte Moreira
às
14:29
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