“AQUELA LÁ QUE NÃO É MAIS MINHA MÃE”
Andréia Baia Prestes
Se existe um dito popular que parece fazer sentido demais na cabeça das
pessoas é o tal do ‘mãe só tem uma’. No entanto, a repetição ad nauseum
de tal provérbio parece não excluir que reflitamos um pouco sobre o seu
acerto e universalidade.
Sou mãe biológica e adotiva. Sou
pesquisadora na área da adoção, melhor dizendo, da ‘não-adoção’, pois
escolhi fazer meu objeto de pesquisa o contexto de crianças e
adolescentes que crescem nos abrigos sem ser adotados.
Assim, tanto
na minha história pessoal, quanto na minha pesquisa acadêmica, pude
notar que mãe, pode ter várias, ou pode não ter nenhuma. Este texto
procura refletir um pouco sobre o lugar que ocupa (ou não) a mulher
genitora de crianças que são colocadas para adoção.
Neste ano de
2013 acabou em definitivo minha longa espera na fila de adoção. Minha
filha chegou, para completar meu projeto de família, que desde sempre
estava baseado numa ideia de que filhos não precisam ser sempre e
necessariamente nascidos da minha barriga, a despeito de eu ser fértil.
Esta ideia, para mim tão natural, rendeu um milhão de dificuldades para
que eu conseguisse que ela tivesse lugar no imaginário dos operadores do
Direito gerido pela Vara da Infância e Juventude de Curitiba,
resultando numa longa espera de cinco anos, (Espera, aliás, vã dentro
dessa Vara, já que nosso processo de habilitação foi por fim indeferido
neste mesmo ano, poucos dias antes de concluído o processo de adoção de
minha menina, que, por óbvio, não ocorreu por Curitiba) coincidência ou
não, cinco anos é exatamente a idade de minha filha, uma menina linda e
muito tagarela, oficialmente minha filha desde o mês de junho de 2013.
Como a adoção ainda é recente, a verdade é que estamos ainda, ela e eu,
no processo de adentrar uma dentro da outra. Já que adotar uma criança
compreende um processo de nascer um pouco diferente do biológico: ela
não saiu de mim. Ela está entrando em mim, e eu nela, à medida em que
construímos os laços mútuos de amor e filiação.
Nesse processo,
acontece às vezes da minha pequena falar um pouco sobre sua família de
origem. Uma das grandes dúvidas dela nesse exercício de trabalhar com
sua própria história de vida, era precisar encontrar um modo de se
referir à sua genitora, pois dentro de sua concepção, era possível que
eu me chateasse se ela chamasse outra pessoa de mãe além de mim. Ao
mesmo tempo, era perceptível o constrangimento dela em não saber que
termo poderia usar ao falar dessa mulher que lhe colocou no mundo, e,
bem ou mal, lhe maternou até os três anos de idade.
Diante desse
dilema, ela ficava um bom tempo titubeando na expressão “Aquela outra
minha mãe/aquela que não é mais minha mãe”. Confesso que nessas horas
tenho uma vontade enorme de consolar minha pequena, dada a violência
inerente à situação de uma criança de apenas 05 anos ser obrigada a
racionalizar a respeito de uma coisa como essa, a de ter sido separada
da família na qual ela nasceu, por motivos que ela é jovem demais para
compreender, ter precisado ficar em um abrigo, onde vivou outras
violências mais, inclusive a de ter seus sentimentos manipulados por
adultos despreparados – talvez bem-intencionados, mas nem de longe
corretos no seu modo de tratar as crianças colocadas sob sua guarda – e,
depois de tudo isso, precisar aprender a viver em uma nova família
escolhida para ser sua.
Mas sei que meu papel como ‘nova’ mãe dela é
justamente não tornar a situação ainda mais pesada do que ela já é em
si mesma. Diante disso, apenas procurei ajudá-la a entender que ela tem
uma mãe biológica, a que a carregou na barriga, e que não teve mais
condições de ficar com ela e, por isso, ela ganhou uma nova mãe, através
da adoção. Com isso, ela tem duas mães. Uma da barriga, e uma do
coração (Ah, sim… Essa é uma expressão que um monte de gente adora
criticar! Mas definitivamente não me importo com isso!). Isso bastou
para deixá-la mais tranquila para falar de sua história pregressa, e
reelaborar a realidade em que agora se encontra.
Apesar de minhas
explicações terem sido capazes de acalmar minha filha, não posso deixar
de pensar que, em certa instância ela tem razão. A mãe biológica dela
não é mais sua mãe: juridicamente falando, o nome de seus genitores foi
anulado de sua certidão de nascimento através da Ação de Destituição do
Poder Familiar. No lugar deles, figura neste documento o meu nome e o do
meu marido, como se fossemos os pais dela desde o seu nascimento.
Juridicamente, esta relação desapareceu. Do mesmo modo como, aos poucos,
as lembranças do que ela viveu nos primeiros anos de sua vida vão
enfraquecendo, à medida em que ela se afasta delas.
A mãe biológica
da minha filha, pela força de um poder exterior à família foi declarada
inepta no exercício da maternagem. Continuar junto dela, ou da família
extensa foi declarado arriscado. Ela estava em risco. Foi então
retirada. Depois, destituída. Depois, disponível para adoção. Por fim,
adotada.
O caso dela, como ocorre com a maioria das crianças e
adolescentes abrigados no país, deriva de uma medida legal de
afastamento da família biológica, não de uma entrega espontânea. O que
implica dizer que, na visão do Estado, esta mulher foi declarada inepta
para uma tarefa, que por anos foi tratada como uma missão indissociável
da própria feminilidade: o de ser mãe.
E, se essa mulher não é capaz
de exercer o seu papel de mãe, aquele que lhe cabe por ser mulher, e
por ter gestado seus filhos, resta-lhe carregar o fardo de não ter tido
êxito em algo que deveria ser natural.
O caso da genitora da minha
filha, que levou à destituição do poder familiar é derivado de um motivo
que cada vez mais constantemente é causador de tais rupturas: a
drogadição. Há, portanto, um duplo estigma: a inépcia no papel de mãe, e
a ‘fraqueza’ de enveredar-se no mundo das drogas e não ser capaz de
sair dela.
Falo aqui utilizando os estigmas impingidos pelo senso
comum a esta mulher. Não penso assim particularmente. Como antropóloga,
como feminista e como pessoa, sei que o amor materno é um mito tão
construído como a maior parte dos demais papéis atribuídos ao gênero
feminino. Ser boa mãe, esposa exemplar, ter uma conduta ‘de respeito’,
são rótulos, amarras que desde muito antes de nascermos são preparados
para as mulheres. E sei, como diria Lévi-Strauss, que a alteridade, o
papel que o outro ocupa no mundo, poderia ser ocupado por qualquer um,
até por mim.
Quando pesquisei em Abrigos, deparei-me com várias
histórias algo parecidas com a vivida por minha pequena antes de chegar
às nossas vidas. Cada vez mais, o perfil das famílias biológicas que
conduz à destituição do poder familiar tem a ver com uma disfunção
gerada pela drogadição dos genitores e os fatores de risco associados a
este fato, tais como a exposição das crianças à violência doméstica,
padecimento de pobreza, risco de também virem a tornarem-se drogaditas,
dentre outros fatores que são classificados dentro do nome genérico
“risco social e/ou familiar”.
É um fenômeno algo recente. Em uma das
Instituições que eu pesquisei, com vários anos de existência, é
possível notar inclusive um certo recorte temporal onde, no passado, a
motivação do abrigamento era derivada mais comumente de fatores
associados à pobreza ou desestruturação do núcleo familiar para assumir,
mais recentemente, a derivação da drogadição como motivo dominante
gerador das ações de afastamento provisório e posterior destituição do
poder familiar.
Com isso, tem-se afastado cada vez mais o
pressuposto de que as crianças disponíveis para adoção são crianças
retiradas de mães pobres. Ainda são, mas não são apenas isso. Há décadas
que o Estatuto da Criança e do Adolescente nos diz que a pobreza não
será considerado motivo para a perda do poder familiar. Um lar pobre não
precisa ser, necessariamente um lar de desamor. Aliás, pode ser justo o
contrário: às vezes, quanto menos posses, mais sentimentos.
O
pressuposto tem sido afastado, mas a realidade ainda mantém seu curso: é
fato que a drogadição não atinge apenas quem é pobre. Mas certamente
quem é pobre tem mais dificuldades de acessar tratamentos, assim como
também fica muito mais difícil, em sendo pobre, acessar subterfúgios que
impeçam a constatação da situação de risco a que os filhos podem ser
submetidos em função da situação que está sendo vivenciada pelos pais. É
como dizem: a violência doméstica está presente na favela, como nos
condomínios de luxo, mas nestes últimos as paredes são mais grossas, e
as casas estão mais longe uma das outras. Além disso, pais de classes
mais elevadas têm condições de pagar pelos custos de defensores em
processos de destituição.
Se fizermos uma pesquisa de perfil das
famílias que têm seus filhos abrigados (não existem dados muito
profundos sobre isso, infelizmente) ver-se-á que, ao mesmo tempo que a
drogadição tem ampliado o número de casos de abrigamento, e, certamente,
também atingido outras classes para além daquelas mais pobres, é pouco
provável que encontremos um herdeiro de grandes sobrenomes entre a
população de cerca de 80 mil crianças e adolescentes abrigados.
Crianças entre as quais, apenas uma pequena, muito, muito pequena
minoria terão um destino parecido com o de minha filha, ganhando uma
nova família. A maioria delas, infelizmente, crescerá dentro dos
Abrigos.
Neste local, serão cuidadas por Mães-Sociais, uma profissão
que merece um outro artigo, à parte deste. Neste, queria falar apenas
das mães biológicas. Essas que carregam seus filhos em seus ventres –
por si só um ato de amor, na minha humilde opinião – e que, seja por
vontade própria, ou por ações que partem do Poder Judicial, acabam por
ver-se nesse não-lugar, nesse limbo de ter sido por um tempo mãe, para,
depois, deixar de o ser.
Esse não-lugar carregado de significados
pejorativos é varrido para debaixo do tapete da equação que resulta na
condução da criança para uma nova família. É certo, os processos de
adoção baseiam-se no pressuposto do ‘melhor interesse da criança’, e,
neste caso, o interesse da mãe biológica passa a ser secundário, já que
ela é (supõe-se) uma adulta. Mas este fato, de ser adulta – e nem sempre
ela o é – exime-a de sofrer, seja pela perda dos filhos, seja pelo
estigma que passará a carregar. Vale citar, neste momento, Maria A.
Pisano Motta, autora do livro “Mães abandonadas: a entrega de um filho
em adoção” (
2008), em seu estudo que contemplou o caso de mulheres
que entregaram seus filhos para adoção logo após o nascimento, o qual
apontou que aquelas que vivenciaram tal situação apresentavam em todos
os casos graus maiores ou menores de sentimentos tais como angústia,
tristeza, culpa, e até mesmo alguns casos de depressão. Isto, em certa
medida, também desmente o entendimento simplista de aquelas que entregam
seus filhos em adoção o fazem levianamente, sem qualquer contemplação
ou arrependimento.
Como eu disse antes, são grandes as amarras que
nos prendem a nossos papéis! Somos condicionadas a achar que, se
fracassamos como mães, se não temos o desejo de maternar, fracassamos
como seres humanos! E, no entanto, quantos caminhos podem levar a esta
decisão? Quantos caminhos podem causar a perda arbitrária do poder
familiar? E se o próprio fato é tão doloroso em si mesmo, porque
carregá-lo de tantos outros tão dolorosos estigmas?
Não tenho
resposta para estas questões. Aliás, duvido que alguém os tenha. O que
gostaria de colocar, apenas, é que existe uma parte da equação que gera
as filiações adotivas que é, em grande medida, ignorada. O da família
que perde. E sim, acho que a criança é quem deve ser protagonista nesta
relação. É com ela que o Poder Público e a sociedade devem preocupar-se.
Mas essa preocupação não deveria ser ‘só′ com a criança. Deveria sim
ser com a família que perdeu. Com a família que persiste perdendo, pelo
fato de uma mulher encontrar-se em situação de drogadição e não ter
condições de acessar um tratamento adequado. Com a mulher que
permanecerá perdendo, pois, nesta situação, poder vir a engravidar
novamente, de uma criança que será tirada dela também, uma criança que
já virá ao mundo estigmatizada pela gestação drogadita, e que por isso
pode não chegar a acessar uma nova família.
O Poder Público falha
vergonhosamente no âmbito de assistir tais mulheres. E, porque falha,
mais e mais crianças são abrigadas. Crianças que nem sempre atendem aos
modelos esperados pelos adotantes. Crianças que envelhecem nos abrigos,
porque o Poder Público de novo falha vergonhosamente, deixando de ser
ágil na condução dos processos, causando rupturas que não dificultam o
retorno para a família de origem, e afunilando ainda mais as
possibilidades de adoção. Crianças que se tornam adolescentes, e depois
adultos, e que precisam encarar uma vida onde a mãe passa a ser ‘aquela
que não é mais minha mãe’, sem que haja, por outro lado, outra que ocupe
esse posto em suas vidas. (Não que isso os impeça de serem indivíduos
maravilhosos! Conheci alguns deles, e posso asseverar que a falta de uma
mãe não os tornou monstros terríveis, como desenham algumas
perspectivas psicologizantes sombrias.) Mas é preciso não perder de
vista que a convivência familiar e comunitária é um direito de toda a
criança e adolescente, e, como tal, deveriam ser-lhes dadas condições de
acessá-lo, seja na sua família de origem, seja numa nova família que
lhe seja constituída.
E, para além dos direitos das crianças e
adolescentes que são retirados da família, esta família ainda continua a
existir no mundo, e possivelmente continua a sofrer dos problemas que
geraram a retirada dos filhos. E, portanto, permanece merecendo ser
destinatária de ações do Poder Público, que, se não podem garantir a
devolução das crianças retiradas, poderia, ao menos, garantir a
repetição de tais perdas em momentos posteriores.
Andréia Baia
Prestes é antropóloga social, com ênfase na antropologia da infância,
direitos da criança e do adolescente e graduada em direito. Autora de
“Ao abrigo da família”, Editora CRV.
http://cristianesouza.com.br/aquela-la-que-nao-e-mais-minha-mae/#&panel1-3
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