quarta-feira, 25 de setembro de 2013

“AQUELA LÁ QUE NÃO É MAIS MINHA MÃE”


Andréia Baia Prestes

Se existe um dito popular que parece fazer sentido demais na cabeça das pessoas é o tal do ‘mãe só tem uma’. No entanto, a repetição ad nauseum de tal provérbio parece não excluir que reflitamos um pouco sobre o seu acerto e universalidade.
Sou mãe biológica e adotiva. Sou pesquisadora na área da adoção, melhor dizendo, da ‘não-adoção’, pois escolhi fazer meu objeto de pesquisa o contexto de crianças e adolescentes que crescem nos abrigos sem ser adotados.
Assim, tanto na minha história pessoal, quanto na minha pesquisa acadêmica, pude notar que mãe, pode ter várias, ou pode não ter nenhuma. Este texto procura refletir um pouco sobre o lugar que ocupa (ou não) a mulher genitora de crianças que são colocadas para adoção.
Neste ano de 2013 acabou em definitivo minha longa espera na fila de adoção. Minha filha chegou, para completar meu projeto de família, que desde sempre estava baseado numa ideia de que filhos não precisam ser sempre e necessariamente nascidos da minha barriga, a despeito de eu ser fértil. Esta ideia, para mim tão natural, rendeu um milhão de dificuldades para que eu conseguisse que ela tivesse lugar no imaginário dos operadores do Direito gerido pela Vara da Infância e Juventude de Curitiba, resultando numa longa espera de cinco anos, (Espera, aliás, vã dentro dessa Vara, já que nosso processo de habilitação foi por fim indeferido neste mesmo ano, poucos dias antes de concluído o processo de adoção de minha menina, que, por óbvio, não ocorreu por Curitiba) coincidência ou não, cinco anos é exatamente a idade de minha filha, uma menina linda e muito tagarela, oficialmente minha filha desde o mês de junho de 2013.
Como a adoção ainda é recente, a verdade é que estamos ainda, ela e eu, no processo de adentrar uma dentro da outra. Já que adotar uma criança compreende um processo de nascer um pouco diferente do biológico: ela não saiu de mim. Ela está entrando em mim, e eu nela, à medida em que construímos os laços mútuos de amor e filiação.
Nesse processo, acontece às vezes da minha pequena falar um pouco sobre sua família de origem. Uma das grandes dúvidas dela nesse exercício de trabalhar com sua própria história de vida, era precisar encontrar um modo de se referir à sua genitora, pois dentro de sua concepção, era possível que eu me chateasse se ela chamasse outra pessoa de mãe além de mim. Ao mesmo tempo, era perceptível o constrangimento dela em não saber que termo poderia usar ao falar dessa mulher que lhe colocou no mundo, e, bem ou mal, lhe maternou até os três anos de idade.
Diante desse dilema, ela ficava um bom tempo titubeando na expressão “Aquela outra minha mãe/aquela que não é mais minha mãe”. Confesso que nessas horas tenho uma vontade enorme de consolar minha pequena, dada a violência inerente à situação de uma criança de apenas 05 anos ser obrigada a racionalizar a respeito de uma coisa como essa, a de ter sido separada da família na qual ela nasceu, por motivos que ela é jovem demais para compreender, ter precisado ficar em um abrigo, onde vivou outras violências mais, inclusive a de ter seus sentimentos manipulados por adultos despreparados – talvez bem-intencionados, mas nem de longe corretos no seu modo de tratar as crianças colocadas sob sua guarda – e, depois de tudo isso, precisar aprender a viver em uma nova família escolhida para ser sua.
Mas sei que meu papel como ‘nova’ mãe dela é justamente não tornar a situação ainda mais pesada do que ela já é em si mesma. Diante disso, apenas procurei ajudá-la a entender que ela tem uma mãe biológica, a que a carregou na barriga, e que não teve mais condições de ficar com ela e, por isso, ela ganhou uma nova mãe, através da adoção. Com isso, ela tem duas mães. Uma da barriga, e uma do coração (Ah, sim… Essa é uma expressão que um monte de gente adora criticar! Mas definitivamente não me importo com isso!). Isso bastou para deixá-la mais tranquila para falar de sua história pregressa, e reelaborar a realidade em que agora se encontra.
Apesar de minhas explicações terem sido capazes de acalmar minha filha, não posso deixar de pensar que, em certa instância ela tem razão. A mãe biológica dela não é mais sua mãe: juridicamente falando, o nome de seus genitores foi anulado de sua certidão de nascimento através da Ação de Destituição do Poder Familiar. No lugar deles, figura neste documento o meu nome e o do meu marido, como se fossemos os pais dela desde o seu nascimento.
Juridicamente, esta relação desapareceu. Do mesmo modo como, aos poucos, as lembranças do que ela viveu nos primeiros anos de sua vida vão enfraquecendo, à medida em que ela se afasta delas.
A mãe biológica da minha filha, pela força de um poder exterior à família foi declarada inepta no exercício da maternagem. Continuar junto dela, ou da família extensa foi declarado arriscado. Ela estava em risco. Foi então retirada. Depois, destituída. Depois, disponível para adoção. Por fim, adotada.
O caso dela, como ocorre com a maioria das crianças e adolescentes abrigados no país, deriva de uma medida legal de afastamento da família biológica, não de uma entrega espontânea. O que implica dizer que, na visão do Estado, esta mulher foi declarada inepta para uma tarefa, que por anos foi tratada como uma missão indissociável da própria feminilidade: o de ser mãe.
E, se essa mulher não é capaz de exercer o seu papel de mãe, aquele que lhe cabe por ser mulher, e por ter gestado seus filhos, resta-lhe carregar o fardo de não ter tido êxito em algo que deveria ser natural.
O caso da genitora da minha filha, que levou à destituição do poder familiar é derivado de um motivo que cada vez mais constantemente é causador de tais rupturas: a drogadição. Há, portanto, um duplo estigma: a inépcia no papel de mãe, e a ‘fraqueza’ de enveredar-se no mundo das drogas e não ser capaz de sair dela.
Falo aqui utilizando os estigmas impingidos pelo senso comum a esta mulher. Não penso assim particularmente. Como antropóloga, como feminista e como pessoa, sei que o amor materno é um mito tão construído como a maior parte dos demais papéis atribuídos ao gênero feminino. Ser boa mãe, esposa exemplar, ter uma conduta ‘de respeito’, são rótulos, amarras que desde muito antes de nascermos são preparados para as mulheres. E sei, como diria Lévi-Strauss, que a alteridade, o papel que o outro ocupa no mundo, poderia ser ocupado por qualquer um, até por mim.
Quando pesquisei em Abrigos, deparei-me com várias histórias algo parecidas com a vivida por minha pequena antes de chegar às nossas vidas. Cada vez mais, o perfil das famílias biológicas que conduz à destituição do poder familiar tem a ver com uma disfunção gerada pela drogadição dos genitores e os fatores de risco associados a este fato, tais como a exposição das crianças à violência doméstica, padecimento de pobreza, risco de também virem a tornarem-se drogaditas, dentre outros fatores que são classificados dentro do nome genérico “risco social e/ou familiar”.
É um fenômeno algo recente. Em uma das Instituições que eu pesquisei, com vários anos de existência, é possível notar inclusive um certo recorte temporal onde, no passado, a motivação do abrigamento era derivada mais comumente de fatores associados à pobreza ou desestruturação do núcleo familiar para assumir, mais recentemente, a derivação da drogadição como motivo dominante gerador das ações de afastamento provisório e posterior destituição do poder familiar.
Com isso, tem-se afastado cada vez mais o pressuposto de que as crianças disponíveis para adoção são crianças retiradas de mães pobres. Ainda são, mas não são apenas isso. Há décadas que o Estatuto da Criança e do Adolescente nos diz que a pobreza não será considerado motivo para a perda do poder familiar. Um lar pobre não precisa ser, necessariamente um lar de desamor. Aliás, pode ser justo o contrário: às vezes, quanto menos posses, mais sentimentos.
O pressuposto tem sido afastado, mas a realidade ainda mantém seu curso: é fato que a drogadição não atinge apenas quem é pobre. Mas certamente quem é pobre tem mais dificuldades de acessar tratamentos, assim como também fica muito mais difícil, em sendo pobre, acessar subterfúgios que impeçam a constatação da situação de risco a que os filhos podem ser submetidos em função da situação que está sendo vivenciada pelos pais. É como dizem: a violência doméstica está presente na favela, como nos condomínios de luxo, mas nestes últimos as paredes são mais grossas, e as casas estão mais longe uma das outras. Além disso, pais de classes mais elevadas têm condições de pagar pelos custos de defensores em processos de destituição.
Se fizermos uma pesquisa de perfil das famílias que têm seus filhos abrigados (não existem dados muito profundos sobre isso, infelizmente) ver-se-á que, ao mesmo tempo que a drogadição tem ampliado o número de casos de abrigamento, e, certamente, também atingido outras classes para além daquelas mais pobres, é pouco provável que encontremos um herdeiro de grandes sobrenomes entre a população de cerca de 80 mil crianças e adolescentes abrigados.
Crianças entre as quais, apenas uma pequena, muito, muito pequena minoria terão um destino parecido com o de minha filha, ganhando uma nova família. A maioria delas, infelizmente, crescerá dentro dos Abrigos.
Neste local, serão cuidadas por Mães-Sociais, uma profissão que merece um outro artigo, à parte deste. Neste, queria falar apenas das mães biológicas. Essas que carregam seus filhos em seus ventres – por si só um ato de amor, na minha humilde opinião – e que, seja por vontade própria, ou por ações que partem do Poder Judicial, acabam por ver-se nesse não-lugar, nesse limbo de ter sido por um tempo mãe, para, depois, deixar de o ser.
Esse não-lugar carregado de significados pejorativos é varrido para debaixo do tapete da equação que resulta na condução da criança para uma nova família. É certo, os processos de adoção baseiam-se no pressuposto do ‘melhor interesse da criança’, e, neste caso, o interesse da mãe biológica passa a ser secundário, já que ela é (supõe-se) uma adulta. Mas este fato, de ser adulta – e nem sempre ela o é – exime-a de sofrer, seja pela perda dos filhos, seja pelo estigma que passará a carregar. Vale citar, neste momento, Maria A. Pisano Motta, autora do livro “Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção” (
2008), em seu estudo que contemplou o caso de mulheres que entregaram seus filhos para adoção logo após o nascimento, o qual apontou que aquelas que vivenciaram tal situação apresentavam em todos os casos graus maiores ou menores de sentimentos tais como angústia, tristeza, culpa, e até mesmo alguns casos de depressão. Isto, em certa medida, também desmente o entendimento simplista de aquelas que entregam seus filhos em adoção o fazem levianamente, sem qualquer contemplação ou arrependimento.
Como eu disse antes, são grandes as amarras que nos prendem a nossos papéis! Somos condicionadas a achar que, se fracassamos como mães, se não temos o desejo de maternar, fracassamos como seres humanos! E, no entanto, quantos caminhos podem levar a esta decisão? Quantos caminhos podem causar a perda arbitrária do poder familiar? E se o próprio fato é tão doloroso em si mesmo, porque carregá-lo de tantos outros tão dolorosos estigmas?
Não tenho resposta para estas questões. Aliás, duvido que alguém os tenha. O que gostaria de colocar, apenas, é que existe uma parte da equação que gera as filiações adotivas que é, em grande medida, ignorada. O da família que perde. E sim, acho que a criança é quem deve ser protagonista nesta relação. É com ela que o Poder Público e a sociedade devem preocupar-se. Mas essa preocupação não deveria ser ‘só′ com a criança. Deveria sim ser com a família que perdeu. Com a família que persiste perdendo, pelo fato de uma mulher encontrar-se em situação de drogadição e não ter condições de acessar um tratamento adequado. Com a mulher que permanecerá perdendo, pois, nesta situação, poder vir a engravidar novamente, de uma criança que será tirada dela também, uma criança que já virá ao mundo estigmatizada pela gestação drogadita, e que por isso pode não chegar a acessar uma nova família.
O Poder Público falha vergonhosamente no âmbito de assistir tais mulheres. E, porque falha, mais e mais crianças são abrigadas. Crianças que nem sempre atendem aos modelos esperados pelos adotantes. Crianças que envelhecem nos abrigos, porque o Poder Público de novo falha vergonhosamente, deixando de ser ágil na condução dos processos, causando rupturas que não dificultam o retorno para a família de origem, e afunilando ainda mais as possibilidades de adoção. Crianças que se tornam adolescentes, e depois adultos, e que precisam encarar uma vida onde a mãe passa a ser ‘aquela que não é mais minha mãe’, sem que haja, por outro lado, outra que ocupe esse posto em suas vidas. (Não que isso os impeça de serem indivíduos maravilhosos! Conheci alguns deles, e posso asseverar que a falta de uma mãe não os tornou monstros terríveis, como desenham algumas perspectivas psicologizantes sombrias.) Mas é preciso não perder de vista que a convivência familiar e comunitária é um direito de toda a criança e adolescente, e, como tal, deveriam ser-lhes dadas condições de acessá-lo, seja na sua família de origem, seja numa nova família que lhe seja constituída.
E, para além dos direitos das crianças e adolescentes que são retirados da família, esta família ainda continua a existir no mundo, e possivelmente continua a sofrer dos problemas que geraram a retirada dos filhos. E, portanto, permanece merecendo ser destinatária de ações do Poder Público, que, se não podem garantir a devolução das crianças retiradas, poderia, ao menos, garantir a repetição de tais perdas em momentos posteriores.
Andréia Baia Prestes é antropóloga social, com ênfase na antropologia da infância, direitos da criança e do adolescente e graduada em direito. Autora de “Ao abrigo da família”, Editora CRV.
http://cristianesouza.com.br/aquela-la-que-nao-e-mais-minha-mae/#&panel1-3

Nenhum comentário: