REJEIÇÃO E FILHO ADOTIVO
por Alex Possato - alex@nokomando.com.br
Sou pai adotivo. E filho adotivo. Meus pais se separaram logo na época
do meu nascimento e, então, se iniciou uma disputa entre meus avós
paternos e minha mãe para ver com quem ficariam "as crianças" - eu e meu
irmão mais velho. Eles, meus avós, mas principalmente minha avó, mãe do
meu pai, achava que nós não estávamos sendo bem cuidados. Isso era
fato: volta e meia apresentávamos problemas de saúde, alergias, gripes
prolongadas... a alimentação não era bem controlada. Ficávamos aos
cuidados ou de ninguém ou de alguma empregada. Uma das quais, evangélica
fanática, gostava de nos espancar com uma bela cinta de couro.
Certa vez, ao visitar vovó, ela percebeu as marcas e vergões dignas de
um feitor de escravo do século XVII. Não teve dúvidas: rumou à delegacia
e abriu um boletim de ocorrência. Mamãe não era uma má pessoa: estava
envolvida em suas neuras desde criança e não podia e nem sabia fazer
melhor. Tanto que aposentou-se precocemente, por invalidez emocional...
De qualquer forma, eu não estava muito atento a esses fatos. A vida
passava e eu era muito "desligado"... Não sofria, embora uma amiga
psicóloga sempre tenha tentado me obrigar a entender que eu sofria e
estava simplesmente bloqueando emocionalmente os fatos dolorosos.
Cresci, estudei, comecei a criar uma visão do mundo e lógico: durante o
meu período de adolescência tinha que enfrentar o mundo e começar a
fazer minha vida. Eu era inseguro, tímido e morria de medo... daí para
culpar mamãe, papai e vovó pelas minhas dificuldades, foi um pulinho...
Aí a psicologia "ajudou-me": deu a desculpa que eu precisava para saber
as razões das minhas dificuldades... Engraçado: quem é que não morre de
medo ao enfrentar o mundo, tem sua dose de timidez e insegurança?
Adotivos e não adotivos, todos têm, não é mesmo? E se todos têm, isso é
problema? Mamãe foi rejeitada, vovó foi rejeitada...
Hoje, já
passei dos quarenta. Estou ótimo e sinto-me um molequinho... igualzinho
quando saí da casa de vovó, aos quinze anos, para ir morar com mamãe.
Pois é, o filho pródigo de retorno ao lar... Cresci, criei minha família
e... lógico, algo me fez adotar... Poderia dar milhares de explicações
do porquê adotar, mas simplesmente estava em mim e na minha esposa...
era uma força maior do que minha razão...
De alguma forma, queria
fazer uma família feliz... Queria construir o modelo de família que eu
não tive... e por algum motivo, neguei meus pais, meus avós e minha
infância... Casei com uma mulher incrível, tive a primeira filha e
adotei o segundo filho - este, um molecão que já chegou com quatro anos
de idade, e que me provocou muito...
Adotei "eu mesmo", sem saber.
Por alguma volta do destino estava refazendo o caminho da minha vida, da
minha infância, e depois descobri, da vida da minha mãe e da minha
avó... Pois é: elas também foram rejeitadas. Vovó perdeu sua mãe quando
era criança. Ficou extremamente ferida e carente... E seu pai, meu
bisavô, a deixou para ser cuidada pela... adivinhem? Vovó - a mãe
dele... Minha avó deve ter ficado "fula da vida"! Geniosa, forte,
dominante, tão logo alcançou a maioridade, tirou o nome paterno do
seu... Excluiu o pai da sua vida... como se isso fosse possível.
Minha mãe nunca fora abandonada... mas sentiu-se. O pai, meu avô, era
alcoólatra. Japonês, vindo da pobreza e miséria do Japão pós-guerra,
como todo bom japonês, era seco igual a um punhado de farinha. Ele
também fora rejeitado pelo seu país... saiu a contragosto, empurrado
pela dificuldade. E não conseguiu estar presente para seus filhos. Mamãe
sentiu-se também rejeitada. Todo mundo era melhor que ela, mais bonito,
mais esperto, mais inteligente. E ela era um lixo. Pelo menos, se
sentia assim, e ainda traz essa péssima auto-estima...
A REJEIÇÃO VEM DO SISTEMA FAMILIAR
Hoje trabalho com psicoterapia. Trabalho com constelação familiar
sistêmica. Minha parceira, mestre terapeuta, ajudou-me a resgatar esse
passado. E a constelação ajuda-me a perceber que a rejeição não é do
filho adotivo que eu fui, nem existem culpados para ela. Minha mãe tinha
essa rejeição, o pai dela também, minha avó também e até meu bisavô,
com certeza, sentiu-se rejeitado. Essa história não tem fim. Trazemos
impregnadas em nosso DNA as heranças ancestrais. Nossos medos e
alegrias, traumas e conquistas não são reflexo somente de fatos que
vivenciamos na nossa infância... Eles são carregados pela linhagem
familiar. Qualquer mamãe ou papai sabe que os filhos já nascem com
determinados comportamentos, com características emocionais.
Já vi
isso até em ninhadas da minha cachorra. Enquanto alguns filhotes, com
alguns dias de vida, se atiravam desesperadamente atrás do leite, um ou
outro, não tinha força, era medroso e parado. E, com certeza, teria mais
dificuldade na vida...
Eu herdei um pouco dessa lerdeza, desse medo
de mamar nas tetas da vida. E não foi culpa da minha mãe. Nem do meu
pai. Nem de ninguém. Através da constelação entrei em contato profundo
com essa emoção da rejeição que é lugar-comum na minha história
familiar. Comecei a aceitar minha família. A acolher todos os que foram
rejeitados. E assim comecei a aceitar a mim mesmo. Pois sou parte
intrínseca dessa família. Eu não seria nada, literalmente, sem minha
história, sem meus pais, avós e antepassados. E somente aí, comecei a
realmente ser pai do meu filho. Ele deixou de ser "eu quando garotinho" e
passou a ser uma individualidade. Alguém também com um história, que um
dia irá confrontá-lo. Mas que cabe a ele resolvê-la.
Meu filho faz
parte do meu sistema, hoje. Mas também, principalmente, é filho dos
pais biológicos dele. Isso nunca irá modificar. Um dia voltei à minha
mãe e reaproximei-me do meu pai. Cheguei inclusive a cuidar dele em seus
últimos meses de vida dominada por um câncer generelizado. Não foi
bondade, não foi caridade. Simplesmente tinha que ser assim. E fico
satisfeito por ter feito isso, mesmo que às vezes tenha sentido muita
vontade de dar um "pé-na-bunda" do velho, tão exigente e arrogante...
Meu filho adotivo tem o caminho dele. Eu sou o pai adotivo. Sou o
segundo pai, segundo a constelação familiar sistêmica diz. E sempre
estarei aqui, como segundo pai. Ele tem um primeiro pai. E uma primeira
mãe. Não sei se eles estarão presentes para ele, algum dia. Mas isso é
pacote que ele terá que desembrulhar... Eu faço a minha parte.
Hoje
não me sinto mais rejeitado. Espero que ele também não se sinta. Pois a
cura para isso está na inclusão: incluir aqueles que também foram
rejeitados em nosso sistema, a começar pelo... papai e mamãe... Por mais
doloroso que isso possa ser, só posso dizer uma coisa: essa dor
liberta...
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